Alguns dias atrás foi postado, aqui no blog do Newronio, um texto chamado Me Chame Pelo Seu Nome É *Quase* Um Filme Bom. Nele, é colocado em evidência como o filme tem seus pontos positivos, como a estética e trilha sonora, mas esses não são o suficiente para esconder a constante hiperssexualização da relação entre homens, a pedofilia fortemente presente no enredo e a negação pelos produtores e escritores de reconhecê-la, além de muitas outras gafes, que fazem com que o filme acabe virando uma obra meio… errada.

Os produtores dão muita ênfase para a questão do toque físico, sempre sexualizado, entre os protagonistas e faz constantes referências ao “fruto proibido” (que, considerando que o filme fala sobre um caso de pedofilia entre um menino de 17 anos e um homem de 24, deixa tudo ainda mais desagradável), resumindo o pressuposto “romance” e a história de amor apenas a isso. Nenhuma fotografia bonita consegue superar uma história simplesmente bizarra. Dois anos depois, em 2019, foi lançado um filme chamado O Retrato De Uma Jovem Em Chamas que conta, também, uma história sobre um romance entre duas pessoas do mesmo sexo, mas é protagonizado por duas mulheres. Esse filme olhou para tudo que Me Chame fez de errado e falou “deixa eu te mostrar como se faz um romance de verdade”.

Retrato De Uma Jovem Em Chamas se passa na França, no século XVIII conta a história de uma pintora, Marianne, que é contratada para pintar o retrato de uma mulher, Heloise, sem que ela saiba, para que a mãe dela possa enviá-lo para o seu futuro marido. Marianne passa seus dias acompanhando e observando Heloise, e suas noites a pintando. Com o passar do tempo, o relacionamento entre as duas vai intensificando e um romance não permitido se desenvolve.

Fazendo um paralelo entre os dois, eu posso afirmar que, enquanto Retrato tem todos os aspectos positivos que o primeiro tinha (e, devo afirmar, até melhores), ele não tem nenhum dos negativos. A história é contada com uma delicadeza e suavidade que dão tempo para as duas mulheres se conhecerem, entenderem seus sentimentos, criar uma relação e se apaixonarem, diferentemente do outro que apenas pula de dois conhecidos para o sexo para dois amantes, nessa ordem.

O filme francês não explicita e muito menos fetichiza nenhuma relação sexual entre as duas mulheres (o que é muito raro em filmes LGBT e principalmente filmes lésbicos), mas deixa subentendido quando acontecem e não as colocam como a causa da paixão entre as duas, apenas como parte dela. Na verdade, ao contrário do outro filme, as duas demoram muito para se tocarem (mesmo que de forma não sexual) e ainda mais para desenvolverem um relacionamento amoroso, já que elas começam compartilhando seus segredos e criando fortes laços platônicos, o que deixa o romance entre elas ainda mais vivo e potente, por ser algo muito mais vindo da alma do que do corpo.

O romance é, tanto para o telespectador quanto para as duas mulheres, repleto de ansiedade e desespero, pois ambos sabem que, quando o retrato for finalizado, Marianne será dispensada e as duas nunca mais se verão na vida. Isso faz com que o amor entre as duas seja forte como uma chama, mas tão rápida quanto uma, principalmente por sabermos que, sendo vivido no século XVIII, não havia esperanças que fosse dar certo.

O filme trata de diversos assuntos além do romance LGBT, como machismo, feminismo, sororidade, aborto, opressão, ansiedade, entre diversos outros, com leveza, mas seriedade, e de maneira impecável. Foi escrito, produzido e dirigido por Céline Sciamma, uma cineasta LGBT e mulher, e teve a equipe de produção majoritariamente feminina, inclusive foi protagonizado por uma mulher lésbica, o que é traduzido para as telas e gera um produto final sensível e carregado, mas que beira a perfeição.

Me Chame, por outro lado, foi feito por uma equipe quase inteiramente composta por homens héteros, o que não é necessariamente um negativo, mas acaba por ter com uma visão superficial do romance e não aprofunda muito em outros aspectos (fora a pedofilia…).

Retrato De Uma Jovem Em Chamas merece um texto por sí só, de tão bom e profundo que é, mas, para terminar esse texto comparando os dois filmes, eu gostaria de trazer mais uma observação. Muitos defendem a cena final de Me Chame com unhas e dentes, tanto pela trilha sonora quanto pela atuação de um dos protagonistas, Timothee Chalamet, que chora em frente a uma fogueira depois de uma ligação de seu interesse romântico, tudo isso enquanto uma música maravilhosa do Sufjan Stevens toca no fundo. Enquanto essa é sim uma das cenas mais bonitas que eu já vi, não chega aos pés da atuação, da construção de cena, da explosão de emoções que acontecem na cena final de Retrato. As duas são apenas os protagonistas chorando com músicas de fundo, mas, a cena do filme francês retoma uma música que foi muito importante ao longo da história do casal e se passa ao ponto de vista de uma das mulheres, demonstrando, sem utilizar palavras, a saudade, o amor, a paixão entre as duas e como ela continuou viva mesmo depois do fim entre elas.

Quando você tem um filme repleto de erros ao longo do seu percurso inteiro, mas uma cena final maravilhosa, e outro filme maravilhoso do começo ao fim, e uma cena final tão impactante e tocante quanto (se não mais), fica fácil colocar ambos na balança e ver qual sai por cima.

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