por Felipe RAG
Na última sexta-feira (8), a Netflix lançou a série de oito episódios chamada “Não Consigo Te Alcançar”, baseada em um mangá de mesmo nome, cuja trama central gira em torno de Yamato e Kakeru, dois jovens estudantes, e de seus sentimentos.
(Nota do autor: se você, leitor, acreditar que essa série pode ressoar em você de alguma forma, seja por conta da trama propriamente dita, pelas reflexões propostas ou pela angústia crescente provocada ao longo de cada episódio, salve este texto em seus favoritos do seu navegador e continue depois de assistir à série – porque a experiência é verdadeiramente boa. No entanto, caso já tenha assistido ou não se importe, sigamos.)
Em suma, Yamato é um jovem talentoso, bonito, com boas notas e tímido, enquanto Kakeru é mais bagunceiro e bagunçado, não sendo tão bonito, enquanto é ruim na escola, nos jogos e por aí vai, mas se destaca como uma pessoa extremamente gentil. Ambos são melhores amigos de infância e Yamato, como dá a entender desde o começo, já sentia algo por Kakeru por anos – o que era doloroso, como demonstra a atuação de excelência do Kentaro Maeda, passando a tristeza melancólica no olhar do protagonista. Kakeru, por sua vez, o via como melhor amigo de fato, mas à medida que a trama evolui e Yamato vai não apenas deixando escapar, como de fato fazendo um esforço para comunicar de alguma forma, a decisão de Kakeru é que o sentimento de seu amigo não deve ser descartado e ele mesmo deve buscar compreender o que ele sente ou não, sabendo que sentia algo mas sem saber o que era esse algo.
Além do enredo, no entanto, duas falas de personagens se destacaram no momento em que assisti a série japonesa. Mikoto, irmã de Yamato, percebeu não apenas o sofrimento de seu irmão, mas descobriu de cara o motivo de seu sofrimento: os sentimentos pelo melhor amigo. Posteriormente, já sabendo o que acontecia, ela encontra Kakeru na rua em um momento de angústia do jovem, pois ele e Yamato tinham acabado de discutir e se afastarem, então se dá o diálogo onde essas duas falas são ditas:
Kakeru: “Tive medo de que as coisas pudessem ficar estranhas entre nós, então não perguntei.”
Mikoto: “Deixar as coisas permanecerem iguais é mais fácil, não é?”
Frases simples, mas a profundidade de ambas reside neste fato. Por medo de que as coisas possam mudar, é comum não fazermos nada mesmo quando a situação atual é de sofrimento. Não fazer nada significa, de forma prática, deixar as coisas permanecerem como estão, como bem respondeu Mikoto. O medo da mudança é um tema central não só na série, mas em diversos aspectos da vida e de outras obras audiovisuais. Um exemplo prático, no entanto, se deu neste mesmo fim de semana.
No sábado, um dia após o lançamento da série, ocorreu a final do Grand Prix de patinação artística que consagrou Ilia Malinin, patinador norte-americano de 19 anos, como o novo campeão mundial da modalidade. Este fato, por sua vez, não possui algo concreto relacionado ao tema, mas ao averiguarmos o programa realizado por Ilia na sua última apresentação, cuja pontuação é a mais importante, veremos o salto Quádruplo Axel (4A) – e é este o centro da discussão sobre mudança, coragem de mudar e combater para que as coisas não fiquem como estão.
Este salto, considerado o mais difícil da patinação e por diversos cientistas do esporte considerado, literalmente, impossível de ser feito, consiste em um salto lateral, onde o patinador deve pegar uma alta velocidade e pular com joelhos dobrados. Uma das dificuldades do salto em si é que devido à posição em que o patinador salta e pousa, ele dá meia rotação a mais do que uma inteira – isto é, um Axel simples, na verdade, dá uma volta e meia, um Axel duplo duas voltas e meia e por aí vai, chegando ao Axel quádruplo, onde o patinador dá quatro voltas e meia no próprio corpo, no ar, de joelhos levemente flexionados. Um salto que sequer era cogitado e era desestimulado pela tabela de pontuação dos organizadores, dada a sua dificuldade e risco, mas Yuzuru Hanyu, patinador japonês considerado por muitos como o maior da história da modalidade, decidiu nos últimos anos que só se aposentaria quando realizasse um Axel quádruplo, gerando uma expectativa tanto no Grand Prix, que não competiu porque se lesionou, quanto no campeonato mundial e nas Olimpíadas de Inverno. Yuzuru tentou por anos e executou o primeiro Axel quádruplo da história, não conseguindo pousar perfeitamente mas sendo computado o salto e ganhando ⅔ da nota completa, mas Ilia, o jovem talento dos Estados Unidos, neste sábado, realizou o mesmo salto e foi não apenas o segundo a fazê-lo. Ilia Malinin se tornou o primeiro patinador da história a executar, de forma perfeita, do salto ao pouso, as quatro rotações e meia do salto considerado impossível.
Tudo isso, no entanto, ressoa com a discussão da facilidade de permanecer onde estava. Yuzuru não precisava levar seu corpo à exaustão e se expor a constantes lesões para ser considerado o melhor do mundo – ele já o era. A questão, por sua vez, gira em torno da vontade de mudar, de sair da zona de conforto em que se encontra e de ter coragem para assumir os riscos que mergulhar nos seus desejos pode trazer.
Ambos os casos, da vida real às personagens da série, a coragem de mudar ressoa com o seguinte diálogo da animação japonesa “A Viagem de Chihiro”. Em dado momento, uma personagem que residia apenas em seu quarto por medo do mundo lá fora afirma: “não posso sair, pois se eu sair ficarei doente”, enquanto Chihiro, a protagonista, responde: “permanecer aqui dentro é o que te deixa doente”. Fazer com que as coisas, sejam elas quais forem, permaneçam como estão é o que nos deixa doentes. O medo de Yamato o impedia de ter a chance de viver algo que ele queria, enquanto o medo de Kakeru o impedia de se manter próximo do seu melhor amigo da forma que ele queria. O medo que Yuzuru pudesse vir a ter poderia tê-lo evitado de fazer história da forma como queria e como fez, enquanto o medo de Ilia ou a simples escolha pelo conforto poderia acomodá-lo na ideia de que não era necessário para vencer a competição o 4A.
O medo é uma dimensão normal e fundamental do ser humano, pois é pelo medo de sermos atropelados, por exemplo, que olhamos para ambos os lados antes de atravessar a rua. O medo é fundamental pois provoca a necessidade de termos cautela e cuidado com as nossas ações, mas pode se tornar uma faca de dois gumes quando evolui para a paralisia – esta que deve ser evitada. Por medo de sermos atropelados, olhamos para os dois lados. Não atravessar a rua apenas aumentaria nossa angústia e nos afastaria de onde queríamos chegar.