Eu demorei pra assistir Blade Runner. Sempre soube da ótima reputação do filme; muito bem avaliado, visuais maravilhosos, história envolvente, um verdadeiro clássico do Sci-Fi e um marco dos anos 80. Quando o assisti, ano passado, reconheci rapidamente todas essas características: é fácil perceber que é um filme, de fato, muito bom, honra todos os elogios que recebeu, mas não foi nenhuma delas a parte que mais me marcou no filme. O que mais me chamou a atenção, o que me lembro mais vividamente até hoje, é a cena de “romance” que mostra o protagonista assediando o seu interesse romântico por longos 4 minutos.

Harrison Ford em Blade Runner

Enquanto a cena passava eu fiquei boquiaberta; não entrava na minha cabeça como um filme tão renomado e tão frequentemente discutido e elogiado entre pessoas que gostam de audiovisual tinha uma cena dessas, e pior ainda, como eu nunca tinha visto ninguém comentando sobre isso antes. A cena mostra todos elementos que caracterizam um assédio: uso de força física para convencer a mulher a aceitar seu avanço, o impedimento de sua recusa, beijo sem consentimento, a ignorância da negação de seu avanço e de súplicas para que a soltasse, violência indesejada durante a relação, entre outras piores ainda. Na hora pesquisei mas não encontrei uma resenha, crítica ou comentário mencionando a cena. Depois disso, não consegui apreciar o filme como uma obra merecedora de tamanha reputação.

Por mais infeliz que seja, esse não é um caso à parte. Outro filme que exibe claras cenas de assédio durante seu percurso, mas isso não afeta no seu sucesso ou reputação, é o clássico de 1984, Os Caça-Fantasmas. No filme, o personagem principal, Peter Venkman, interpretado pelo Bill Murray, faz diversos avanços indesejados na protagonista Dana, mentindo sobre sua identidade para entrar em sua casa, agindo sexualmente contra a vontade da mulher, a beijando enquanto está inconsciente, entre tantas outras ocasiões. Esse foi outro filme que eu fui assistir com expectativas altas, mas terminei incomodada.

Bill Murray como Peter Venkman em Caça-Fantasmas

Não coincidentemente, essas atitudes sempre vinham do protagonista corajoso, teimoso, cabeça dura, persistente e carismático que vai acabar, depois de muita luta e dificuldade, salvando não apenas a pátria e a história inteira, vencendo o monstro, como, também, salvando e conquistando a mulher. No começo, vai ser quase impossível, mas depois de inúmeras tentativas, com muita força de vontade, ele chega lá. Isso se dá porque, de acordo com os roteiristas, a luta que o homem tem para vencer o vilão é paralela à luta que ele enfrenta para conquistar a mulher (ou melhor, enfrentar o “vilão” que ela era no começo do filme). É a famosa “ela ainda não sabe o que quer”, colocando a mulher como teimosa e maluca no início (um monstro), para depois o herói a domar, mostrando como ele, no final, é o que ela queria desde o começo.

O uso desse mecanismo para iniciar romances nas histórias é, no meu ver, enraizado na velha ideologia machista de que “mulheres são loucas” e que quem realmente sabe das coisas são os homens. Mulheres são loucas, então o homem fica encarregado de trazê-las à razão; mulheres são loucas, então suas reações aos seus avanços são dramáticas e não representam o que elas realmente querem. Na época em que esses filmes foram lançados (e atrevo-me a dizer que até hoje), essa ideologia ainda era muito aceita, sendo usada, não só nessas situações, mas também reforçada como parte do alívio cômico, como, por exemplo, na cena do Bill Murray, no já mencionado Caça-Fantasmas, perguntando para uma mulher, depois que ela o aborda para se queixar de um fantasma em sua casa, se ela está menstruada, para garantir que o que ela está falando era real e não apenas fruto de seus hormônios.

Bill Murray e Sigourney Weaver em Caça-Fantasmas

Como já era esperado, as personagens femininas são sempre escritas para, no final, se apaixonarem pelo homem, passando a mensagem de que a condenação das atitudes iniciais dos protagonistas era, a grosso modo, uma frescura. Ora, no final eles se apaixonaram e viveram felizes para sempre, então ela que estava errada em negar as abordagens dele no começo do filme. Por isso, eu, mulher da vida real, deveria aceitar o homem que me assedia com frequência, afinal, ele está persistente em me conquistar e isso pode gerar um romance maravilhoso, como nos filmes. Ou ele, o homem da vida real, deveria assediar constantemente todas as mulheres pelas quais tem interesse e ignorar todos os sinais de que elas não estão afim e que não querem ter relações com ele, já que é assim que se conquista mulheres, como nos filmes.

Sean Young e Harrison Ford em Blade Runner

Esse fenômeno é muito comum nesses filmes de “cultura nerd”, como os dois mencionados anteriormente, além de outros como Indiana Jones e Star Wars (alguns avanços de Han Solo na princesa Leia), mas esse não é um fenômeno limitado a esse gênero cinematográfico. Um filme que retrata muito bem o que foi mencionado é Ata-Me!, do Pedro Almodóvar, que conta a história de um homem que escapa de um hospital psiquiátrico e decide sequestrar sua atriz preferida. No final, ela acaba se apaixonando perdidamente por ele e eles fogem juntos e vivem felizes para sempre… Depois dele ter amarrado e ameaçado e agredido e forçado ela diversas vezes. Ao invés de retratar um romance proibido, como, provavelmente, era a intenção, o filme conta uma história de abuso seguida por uma forte síndrome de Estocolmo. Ao invés de fazê-lo de forma crítica, o romantiza.

Antonio Banderas e Victoria Abril em Ata-Me!

Se você pesquisar sobre qualquer um dos filmes mencionados neste texto, as críticas estarão sempre exaltando seus lados positivos e, se chegarem a mencionar o assédio e o machismo retratados (o que é raro), grande parte das vezes é com desdém ao invés de uma denúncia. É muito mais fácil falar bem de um filme que possui excelência em diversos aspectos, ainda mais um filme já “antigo” e estabelecido, do que realmente criticá-lo pela mensagem que ele acaba passando em certas partes, especialmente quando não te afeta.

Porém, se um filme mostra de forma tão clara comportamentos violentos, julgá-los como “normais” ou “apenas uma parte” do filme, “compensada pelo todo”, não acaba sendo tão ruim quanto ignorar esses comportamentos quando eles acontecem na vida real, deixando a imaginar que se alguém o reproduzisse, suas ações poderiam, também, ser “compensadas pelo todo”? Como quando se diz “ah, mas ele é tão bonzinho” depois de apontar um assédio sexual.

Filmes têm grande influência cultural e social, ainda mais quando são elogiados e renomados ao longo de anos, então, não responsabilizá-los pelas atitudes e comportamentos que podem influenciar acaba potencializando suas possíveis consequências.

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