Depois de um hiato merecido, cheio de grandes momentos, aqui volto para escrever mais um texto, mas já lhe aviso: mais que apenas um monte de linhas sobre cinema iraniano ou sobre a genialidade incompreendida de Adam Sandler, esse é um texto sobre meu filme favorito “Us and Them” ou “Pérolas no Mar” (pela primeira vez concordo que a tradução do filme ficou melhor do que o original, que nem é tão original assim); com certeza vai ser muito mais pessoal e envolvido pelos sentimentos que ele me desperta que necessariamente uma análise preto no branco sobre o único filme da René Liu como diretora, afinal, acho que nada nesse mundo é tão simples assim.

Antes de mais nada, gostaria de explicar o quanto esse filme é único, não porque essa foi a minha escolha, mas, sim, porque fui convencido de sua importância e não poderia deixar de fora. Como eu já disse, “Us and Them” é o único filme da diretora René Liu, que é muito mais conhecida por suas músicas e atuações, e, devo confessar: por mais que admire diretores já renomados, nenhum deles fez uma obra capaz de me tocar tanto quanto essa que é a primeira experiência da diretora por trás das câmeras, seja pela força de seus personagens, principalmente a protagonista desse romance, seja pela delicadeza em abordar situações reais. Toca, principalmente, por deixar de interpretar as histórias de outros diretores homens para mostrar a sua interpretação da juventude e do amor.

Há quem diga que a vida é feita de encontros e desencontros, e eu concordo totalmente com essa afirmação; afinal, como poderíamos nos relacionar com tantas pessoas simultaneamente em tão pouco tempo? Na maioria das vezes, duas pessoas que vêm do mesmo lugar ou moram na mesma cidade nunca se encontrariam se não fosse o acaso do destino ou da sorte, unidos por nada mais do que uma passagem de trem ou avião que coincidem, mas, também, por muito mais do que só aquilo que é tangível. Assim começa a jornada de Jianqing e Xiao-Xiao, na véspera de ano-novo de 2007, uma amizade que é confundida com um romance desde o início, mas também carrega aquilo que de mais belo pode existir em qualquer relação entre dois amigos: carinho, preocupação e amor.

Esse cuidado é justamente o barbante vermelho que conduz toda a história, seja no interior, local onde as famílias de ambos os personagens vivem, ou na cidade grande, onde a refeição caseira e as paisagens da natureza são trocadas por cigarros, cervejas e arranha-céus, o que parece justo enquanto são “jovens e talentosos”, apenas esperando completar o ditado de “Se você sobreviver 5 anos lá, você realizará seus sonhos”, perpetuado muito mais vezes por aqueles que ficaram pelo caminho do que pelos que realmente completaram o grande teste.

Ainda assim, dentro dessa grande cidade que carrega uma ambiência tão hostil, não há heróis ou vilões, mas, sim, pessoas, com suas dificuldades, dilemas, paixões, gostos exóticos e jogos de computador, participando da vida de Jianqing e Xiao-Xiao como amigos, chefes, namorados e vizinhos, também com dificuldades em conciliar todas as responsabilidades da vida adulta em uma cidade que nunca dorme, e, de alguma forma, contribuem para o desenvolvimento de toda essa história, seja com um diálogo mínimo ou com ações que devido ao destino ou a sorte afetam os sentimentos e a vida de todas as maneiras possíveis.

E é justamente esse toque de complexidade das relações humanas e também a sutileza que faz desse filme muito mais do que apenas momentos encenados e capturados dentro de um set, e, sim, um pequeno retrato da vida, do cotidiano, do amor e do amadurecimento. Uma história em que não existem ações maldosas, e, sim, carregadas de sentimentos, de erros humanos e de falta de comunicação e interpretação, e os detalhes dos diálogos e dos personagens como os grandes sapatos de Xiao-Xiao dão uma graça e profundidade ao personagem e a relação dela com o mundo, como se buscasse escapar da realidade cruel por dentro e por fora por meio de um detalhe. Assim como nós do lado de fora, que roubamos anéis em troca de amor.

Aqui é a parte onde eu vou dar spoilers, até falaria para você assistir esse filme na Netflix, mas, por algum motivo, ele desapareceu do catálogo e não consegui encontrar em lugar algum, a não ser em um torrent chinês. 

No meio de todo esse caos urbano, da juventude e da falta de dinheiro, você pode encontrar as coisas mais bonitas nos lugares onde menos espera, e, quando percebe, já é tarde demais. É assim que Jianqing e Xiao-Xiao encontram no meio das suas decepções profissionais e amorosas um amor capaz de fazer até mesmo o menor cubículo se tornar um local aconchegante, e, de repente, uma cama de solteiro é o suficiente para dois corações dormirem quentinhos.

A relação dos dois nunca foi morna, mesmo nas brigas e nos momentos comuns, Xiao-Xiao e o acaso sempre davam um jeito de fazer com que tudo fosse intenso e repleto de beleza até mesmo naquilo que ninguém poderia enxergar. Até com o comportamento idiota e imaturo de Jianqing, Xiao-Xiao mostra o quão forte é, carregando sozinha o peso de duas pessoas em um relacionamento, tanto na parte tradicional e palpável, quanto naquilo que os olhos não podem ver, com um sorriso no rosto e seus sapatos coloridos, quebra com qualquer clichê dos filmes de romance e se torna uma pessoa real, que mesmo com um sonho tradicional, é capaz de esquecer tudo aquilo que está no mundo ao seu redor, pois mesmo nos piores momentos, a única coisa que verdadeiramente importa para ela, muito além do sucesso, do dinheiro e do orgulho, era o amor, encontrar alguém que assim como ela fosse capaz de pegar as estrelas do céu e as pérolas do mar.

Nós vemos essa história pela perspectiva intercalada dos dois amantes, que mais uma vez, devido as viagens de ano novo, se encontram e têm a mesma intensidade de anos atrás, claro que dessa vez com vidas totalmente diferentes, responsabilidades que nunca se imaginaram tendo, mas mesmo assim com carinho pelo passado e também gratidão ao destino ou a sorte por os colocarem frente a frente uma última vez, e, assim como a transição do inverno para a primavera, que acontece justamente durante o ano-novo chinês, permitem florescer novamente o amor.

Dessa vez, tudo o que podem fazer para concluir a linda história que tiveram, é se despedir, pois, até então, nunca havia um ponto final nessa história, até porque o destino ou a sorte sempre dava um jeito de aproximar aqueles que nunca queriam se separar, mesmo sabendo que não era a melhor coisa a se fazer para ninguém, mas ambos também sempre deixaram o amor falar muito mais alto do que qualquer razão.

Talvez, existam pessoas destinadas a se encontrar, mas não com sorte o suficiente para ficarem juntas; que a união do destino e da sorte as uniu para se amarem, aprenderem, curarem e crescerem enquanto puderem. sempre que se encontrarem, seja no trem, no avião ou em uma sala, irão relembrar de tudo aquilo que viveram, e desejar nunca ter partido, pois sem sua outra metade o mundo se torna verdadeiramente cinza, ainda que aquilo que se perdeu seja a companhia, mas nunca o amor, e o que resta além desse sentimento são as estrelas do céu e as pérolas do mar.