As obras literárias infanto-juvenis representam maioria absoluta dos livros mais vendidos no Brasil e no mundo. Não precisamos de muitos argumentos para comprovar tal afirmação, basta lembrarmos de obras como “O Senhor dos Anéis” e a série “Harry Potter”, narrativas que envolveram adultos, jovens e crianças, viraram moda e ganharam as telas do cinema.

Mas não são destes livros que falaremos aqui, mas sim de uma outra obra, muito mais singular e envolvente, que vários leitores já ouviram falar ou já leram em edições e adaptações pouco confiáveis. Trata-se de “Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho” de Lewis Carroll.

A obra, mais de um século e meio depois de sua publicação, é cada vez mais leitura para adultos, embora Carroll carregue até hoje o fardo de ser considerado um autor infantil. Uma leitura não ingênua da narrativa carrolliana abre para o leitor um múltiplo e complexo sistema de alusões nos mais diferentes níveis, desde o mais evidente, como o seu contexto autobiográfico, até leituras mais densas conceitualmente: discussões sobre a representação, a lógica, a psicanálise e, até mesmo, a filosofia.

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Conta-se que as aventuras de Alice surgiram na tarde de 4 de julho de 1862, a pedido da menina Alice Liddell, ao matemático de Oxford, e amigo da família, Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido como Lewis Carroll, que teria também ilustrado a primeira versão de “Alice no País das Maravilhas”. Com seu peculiar realismo fantástico, Carroll narra os encontros e desencontros de uma menina como seres fabulosos, fundindo de modo singular, jogos de linguagem e diálogos muito bem construídos estilisticamente falando. Seu leitor é chamado a participar ativamente da história, muitas vezes quase que como co-autor, reescrevendo aquilo que lê. Um exemplo é o trecho traduzido e transcriado pelo poeta Augusto de Campos:

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momiratos davam grilvos.

Como se vê, estamos diante de um quebra-cabeças e somos convidados a participar deste jogo de espelhos, desmontando as palavras, fazendo associações sonoras, na tentativa, muitas vezes trabalhosa, de decodificar o texto, dentro de uma certa lógica discursiva.

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A editora CosacNaify acaba de nos presentear com a publicação de “A Caixa Alice + Alice” composto por dois livros: o inédito “Alice Através do Espelho”, com ilustrações da artista Rosângela Rennó, e a edição especial antes esgotada de “Alice no País das Maravilhas” ilustrada por Luiz Zerbini, publicada pela mesma editora em 2009, desta vez, com uma faca especial na capa. Se na primeira história Zerbini usou um baralho para criar as ilustrações, em “Alice Através do Espelho” a artista visual mineira Rosângela Rennó se apropriou de frames de filmes e de algumas das célebres ilustrações de John Tenniel para recriá-los com um efeito de distorção produzido pela interferência de uma lente ao refotografar as imagens. O resultado é uma perspectiva “através da lente”, uma multiplicidade de Alices emolduradas pela cor vermelha.

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Outra edição que vale destaque é “Aventuras de Alice no País das Maravilhas” da Globolivros, com fantásticas ilustrações da artista japonesa Yayoi Kusama que faz Alice habitar o seu famoso e simbólico universo circular: um achado poético que espelha os descaminhos percorridos por Alice.

Carroll tem muito a nos ensinar: Não importam os caminhos de saída ou chegada, o que importa é a travessia. O caminho se faz no caminhar.

“Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
Isso depende muito de para onde queres ir – respondeu o gato.
Preocupa-me pouco aonde ir – disse Alice.
Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas – replicou o gato.”

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João Carlos Gonçalves (Joca)

Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

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