Se existem exemplos de filmes injustiçados nos respectivos lançamentos, com certeza Blade Runner é o maior deles: a adaptação de ‘Androides sonham com ovelhas elétricas?’ contou com drásticas interferências do estúdio em sua narrativa sob o pretexto de “não estar ‘entendível’ e consequentemente, não-lucrativo”. Para a versão lançada no cinema houve a inclusão de narração para que tornasse o filme mais compreensível e por questões contratuais, Ridley Scott também foi obrigado a mudar o final. À contragosto, Ford e Scott cumpriram as exigências dos engravatados e em junho de 82 o filme saiu, segundo o próprio diretor, mutilado. Apenas com a exibição em outras partes do mundo e o lançamento em VHS (tecnologia muito recente na época) o filme caiu no gosto da crítica e do público. Posteriormente, um estudante de cinema da Califórnia encontrou o material original do longa e de modo quase instantâneo, o filme se tornou cultuado no circuito universitário, oportunidade enxergada pela Warner, que permitiu o diretor reeditá-lo da maneira que achasse melhor em 1992. Nos seus 25 anos, a obra ganhou também uma versão final, na qual o diretor faz correções as quais a tecnologia da época não permitia e apenas em 2007 Blade Runner pôde ser vislumbrado e apreciado na sua completude.
Felizmente o longa não se perdeu no tempo como lágrimas na chuva e sua influência pode ser enxergada em inúmeras produções desde seu lançamento. Influências em clássicos como Akira (1988), Matrix (1999) e Ghost in the Shell (1995) não tangem apenas a linguagem cinematográfica, visual ou de ficção científica, mas sua percepção de futuro (além de reconhecida pela NASA como extremamente realista) foi responsável pelo estabelecimento do sub-gênero cyberpunk no cinema, feito semelhante ao de Metrópolis (1927). Ridley Scott buscou a criação de um universo atemporal, no qual não fosse possível distinguir exatamente a época em que foi gravado. Por mais que a história se passe em 2019 e eventualmente o longa se torne “datado”, os elementos de cenografia, diálogos, figurino, música e edição de som somados ao (até então) perfeccionismo do diretor criam toda uma ambientação inspirada na já urbanizada Tóquio; mística, sombria e claustrofóbica. Claustrofobia essa que pode ser lida como espacial, devido à ausência de horizonte na imensidão de uma Los Angeles distópica, e temporal, uma vez que somos apenas contextualizados sobre os fatos ocorridos no passado (como a tomada do planeta pelos Replicantes) e ao longo do desenvolvimento da história, a ideia de futuro se torna gradativamente nebulosa.
Ainda sobre as características técnicas do filme, o Nerdwriter recentemente analisou o papel da música em Blade Runner: diferente de outras produções, o som (e isso vale para a trilha sonora, design de som e diálogos) não desempenha apenas o papel de ambientar, adicionar ou definir o tom de alguma cena, mas faz parte do DNA daquele universo. A trilha sonora foi composta pelo músico Vangelis, conhecido principalmente pelo eletrônico/progressivo nas trilhas de Cosmos de Carl Sagan e Chariots of Fire (1981). No filme de Ridley Scott, o compositor busca mesclar os temas clássicos feitos no theramin para ficções antigas com faixas de maior “musicalidade”, como as músicas de Star Wars. Todos os sons (leia-se os três exemplos supracitados) são reverberados. A ideia de eco reflete e acompanha a iluminação, os personagens e suas ações, além de instigar sentimentos de paranóia e pensamentos sobre o que é realmente oco: os espaços vazios, a sociedade ao redor, os Replicantes e/ou até mesmo, os próprios humanos.
Antes dos eventos de Blade Runner, os humanos se viram na obrigação de colonizar outro planeta pela superpopulação, extinção dos animais e falta de recursos. Com parte considerável da fauna extinta, réplicas orgânicas desses animais começaram a ser fabricadas e vendidas, experimento também realizado com humanos, tornando-os mais fortes e ágeis. Os Replicantes humanoides foram responsáveis por um motim no novo planeta e consequentemente, proibidos na Terra. Criados pela Tyrell Corporation, os Nexus-6 (modelo mais atualizado de Replicantes) começam a se manifestar pela cidade e a responsabilidade de “aposentá-los”, eufemismo para a execução dos Replicantes, passa a ser dos Caçadores de Androides (ou Blade Runners). A trama começa quando o Caçador de Andróides Rick Deckard (Harrison Ford) é intimado à caçar quatro Replicantes, liderados por Roy Batty (Rutger Hauer).
Parênteses do autor: Roy é sem dúvida, o personagem mais profundo da história. Suas motivações vão muito além de se vingar dos criadores e dos que causaram o sofrimento dos Replicantes no outro planeta. Sua motivação é algo impossível, que nunca compensará o sofrimento e repressão que sua espécie sofreu (e sofre!), visto que sua vida é programada para ser curta.
Por motivos de Spoiler não vou me estender na história, mas com a contextualização acima, já é possível levantar a discussão. A todo momento, ficamos aflitos em saber quem é ou não um Replicante, mas… por quê? Estamos tão acostumados com ficções que abordam a vida artificial como arauto do apocalipse do fim da humanidade, e ainda quando assistimos à Blade Runner tendemos a pensar nos Replicantes (que mesmo artificiais, são completamente feitos com matéria orgânica) como seres malignos e que devem ser eliminados, mesmo que estes sejam apenas versões “melhoradas” dos humanos, com profundidade e sentimentos semelhantes. Eles não possuem o DNA humano, mas e daí? Pensam (logo, existem), agem, falam e se emocionam como nós. Não se vêem presos à moralidade de seu criador, possuem um background completamente diferente e só se tornam um problema porque foram enxergados como ameaça. Durante o filme, não é possível afirmar se Deckard é ou não um Replicante e essa dicotomia apoia o filme na sua discussão. A dúvida torna ainda mais tênue a linha entre humanos e Replicantes e a partir do momento em que a essência das coisas vivas são as mesmas, o que importa se o protagonista é artificial ou não?
Tal questionamento pode ser perdido a partir do momento em que a Warner anunciou uma continuação para o filme, que irá estrear em Outubro deste ano. Sendo bem direto: o erro começa no anúncio de uma sequência. Blade Runner não é uma saga, mas sim algo que funciona melhor aberto do que fechado. Sim, eu gosto do Star Wars VII, dos novos Planeta dos Macacos e Mad Max: Fury Road (principalmente Mad Max), porém são três situações distintas.
Mad Max é algo a parte. George Miller pegou o próprio universo (o que faz toda a diferença) para apresentar uma releitura e aproveitar das novas tecnologias para construir o maravilhoso filme de ação pós-apocalíptica, surreal e artística. Star Wars é uma saga de fantasia, além de ser a franquia mais rentável do cinema – o que já é motivo para os estúdios não estragarem (de novo) as sequências -, é um universo que já vem sendo expandido há tempo em outras mídias e já virou parque. E se virou parque, virou passeio. O caso de Planeta dos Macacos é mais parecido com Blade Runner: ambos já não podem contar com os autores, os cânones provém de livros clássicos de ficção, os quais foram adaptados brilhantemente para o cinema; contudo Planeta dos Macacos já possui uma série extensa de histórias que vão além da original e além disso, a trama é um prequel, de modo a contar os eventos anteriores ao dos filmes (talvez uma história sobre o Motim em Orion fosse mais interessante). Mas a grande questão é: todos as três funcionam como blockbusters. A linguagem de Blade Runner é diferente. Os blockbusters citados (com excessão de Mad Max) e A Chegada, do Villeneuve, trabalham com roteiros compensatórios, os quais não demandam muito da interpretação do espectador para a construção e desenvolvimento da trama/discussão.
De qualquer forma, Blade Runner continua sendo um clássico imortalizado, uma das maiores e mais influentes ficções de todos os tempos. Continuemos ansiosos ou aflitos em descobrir se o Villeneuve vai entregar o que uma continuação de Blade Runner merece.
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