Temos duas possibilidades de encarar estes tempos de crise (econômica, social, existencial e moral): ou a enfrentamos de frente ou simplesmente fingimos que ela não existe. Talvez nenhum escritor do século XX tenha retratado a crise existencial do ser humano de modo tão singular e pungente como Samuel Beckett.

Seus personagens retratam a precariedade da própria vida, seus romances e peças teatrais descrevem a humanidade no limite extremo da carência e da fragilidade.

Newronio - 2015-13 - Foto 1a

Beckett nunca esteve tão atual: a desesperança dos seus personagens reflete e refrata o momento crítico pelo qual o mundo está passando, uma sensação pré-apocalíptica, um estado de espírito de pessoas que acordam e dormem com a perspectiva de uma guerra causada por um inimigo invisível.

Samuel Beckett nasceu em Foxrock, nas proximidades de Dublin, Irlanda, em 1906. Sua biografia apresenta traços importantes que marcarão profundamente suas obras: era de família burguesa e protestante. Vai para Paris estudar e lecionar; forma-se em francês e italiano e leciona inglês. Trava contato com Jean Paul Sartre e James Joyce, de quem se torna amigo e secretário durante a cegueira do autor de “Ulisses”. Em 1931, volta a Dublin, onde leciona Filologia. Demite-se um ano depois, saindo em viagem por Londres, Paris, Itália e Alemanha, período em que conviveu com o que a Europa tinha de mais sofisticado em Arte e Literatura, círculo formado por Gertrude Stein, Ezra Pound, T. S. Eliot e Yeats.

Durante o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, Beckett volta a Paris e ingressa na resistência francesa em luta contra a ocupação nazista. Trabalha como intérprete num hospital militar.

Newronio - 2015-13 - Foto 1aa

Traço toda está história de vida, talvez para mostrar o porquê de Beckett ter se tornado o poeta da solidão e da incomunicabilidade, construindo uma obra de ficção radical em termos de linguagem. Suas principais obras são “Esperando Godot” (1947-48), “Fim de Jogo” (1957), “Dias Felizes” (1961) e a famosa trilogia “Molloy”, “Malone Morre” e “O Iniminável” (1951-53). Em 1969 Beckett recebe o prêmio Nobel de Literatura.

Newronio - 2015-13 - 2a

No Brasil, felizmente, sua obra que antes se encontrava fora de catálogo ou esgotada, ganha novas e instigantes edições da CosacNaify. O mais recente lançamento é o romance “Textos para Nada”, que descreve um estranho habitante de um limbo que se acomoda num charco, mas ainda consegue olhar para o céu; o narrador desse livro rememora fragmentos de lugares e de histórias passadas: “Para onde eu iria, se pudesse ir, o que seria, se pudesse ser, o que diria, se tivesse uma voz, quem é que fala assim, dizendo que sou eu?” Para ele, resta apenas a tentativa de continuar narrando, mesmo que não haja mais nada – dentro ou fora de si – para narrar. Publicado em 1955, este livro radicaliza os experimentos feitos por Beckett na trilogia anteriormente citada.

Newronio - 2015-13 - Foto 3

Outra pérola é “Murphy”, primeiro romance publicado pelo autor. A narrativa acompanha a vida do anti-herói que dá nome ao livro e sua companheira, a prostituta Celia. Uma trupe de amigos irlandeses os segue até Londres. Celia quer casar-se com Murphy e o convence a procurar trabalho. Num sanatório, o protagonista emprega-se como enfermeiro e descobre no cotidiano dos doentes uma vida mais atraente que a de fora. Murphy prefigura o humor negro e a falta de sentido da existência que são as marcas do estilo maduro do autor.

Newronio - 2015-13 - foto 4

O leitor pode estar se perguntando: o texto de Beckett deve ser muito existencialista, difícil e hermético, mas não podemos esquecer que um dos traços mais notáveis da literatura do século XX é o senso do lúdico e do jogo, o gosto pela paródia e pela farsa. A obra de Beckett é isso: uma brincadeira séria, um jogo em que o leitor é constantemente testado.

Vale a pena participar destas saudáveis armadilhas tecidas por Beckett que, sabiamente, já sentenciou: “…e quando tudo isto acabar, ainda resta a minha história”.

 

IMG_0245

João Carlos Gonçalves (Joca)

Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

Os colunistas do Newronio são professores, alunos, profissionais do mercado ou qualquer um que tenha algo interessante para contar.