Demorei um pouco para processar o impacto que o filme “Aquarius” de Kleber Mendonça me causou. Após refletir e ler as críticas e conversar com amigos, chego a uma conclusão: é um trabalho sobre o poder do Tempo e da Memória.

Assim, na minha leitura, a personagem Clara, lindamente defendida por Sonia Braga, seria Mnemosine, a deusa grega da memória. Interessante notar que, de acordo com a mitologia grega, tempo/memória possuem um parentesco: Mnemosine (memória) é irmã de Cronos (tempo) e Okeanós (oceano), ambos gerados por Gaia, a Terra, e Urano, o Céu. Mnemosine, a quinta esposa de Zeus, gera desta união as Forças do Canto, as Musas.

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Para a percepção mítica e arcaica o presente opõe-se ao passado e ao futuro, pois ambos representam uma ausência. Passado e futuro, portanto, unidos por tal exclusão, pertenceriam ao reino do Esquecimento até que a Memória de lá os recolha e os torne presentes pelas vozes das Musas. O poeta, pelas Musas “inspirado”, é o profeta-desvelador de fatos passados e fatos futuros, redimindo-os do esquecimento. Kleber Mendonça é o poeta, Sonia Braga é a Musa.

Clara (Sonia), luta para a sobrevivência do seu Lar, onde sua história pessoal se consolidou. Ela é a última remanescente de uma espécie de oásis metafórico que é o edifício Aquarius, que poderia ser demolido pela especulação imobiliária, não fosse a sua resistência. O filme é dividido em capítulos, todos relacionados a uma espécie de recordação que acaba por unir Passado, Presente e Futuro.

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Poderíamos dizer que assistimos às memórias de Clara e o seu recordar caminha em direção a um tempo que “já não é” (o passado), e cruza-se com o que “ainda não é”, instância futura que se presentifica no momento da representação deste recordar; sem esquecer, porém, da impossibilidade de fazer coincidir este o que “já não é” (o visto/vivido), com aquilo que “ainda não é”, o tempo re-vivido, construído pela memória, e representado pela linguagem-filme – signo que nasce a partir deste “já não é”: passado que só existe ao ser recuperado e se dará a conhecer como representação, enquanto presença de um mesmo que, na representação, “já é outro”. Esta reflexão é representada de modo analógico pela canção “Hoje” de Taiguara, que abre e encerra o filme. O hoje que traz as marcas do passado e que aponta para o futuro:

“Hoje/ Trago em meu corpo as marcas do meu tempo/ Meu desespero, a vida num momento/ A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo…/ Hoje/ Trago no olhar imagens distorcidas/ Cores, viagens, mãos desconhecidas/ Trazem a lua, a rua às minhas mãos,/ Mas hoje,/ As minhas mãos enfraquecidas e vazias/ Procuram nuas pelas luas, pelas ruas…/ Na solidão das noites frias por você./ Hoje/ Homens sem medo aportam no futuro/ Eu tenho medo acordo e te procuro/ Meu quarto escuro é inerte como a morte (…)”

Clara, ao contar o seu tempo, a sua vivência, acaba por, metaforicamente, recontar-redescobrir a nossa história, a história de um Brasil contemporâneo, cheio de contradições. Clara (nossa narradora), nos lembra da importância do narrar, do contar uma estória, pois apesar de não termos vivido determinado acontecimento, este nos é contado pelas palavras daquele que o vivenciou, o narrador. Ao dialogarmos com o passado, transformamo-lo em presente, no Hoje.

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Narra-se para rememorar; a palavra como salva-vidas do passado, que morreria vítima do esquecimento, não fosse o poder do relato, o passado não seria reatualizado, historiado. Ouvindo uma outra voz, caminhamos ao encontro de nossa própria subjetividade. Assim, podemos “ler” as histórias da humanidade “como o fluxo constitutivo da memória e, portanto, de sua identidade e nem por isso o próprio movimento da narração deixa de ser atravessado, de maneira mais subterrânea, pelo refluxo do esquecimento; esquecimento que seria não só uma falha, um “branco” de memória, mas também uma atividade que apaga, renuncia, recorta, opõe ao infinito da memória a finitude necessária da morte e a inscreve no âmago da narração”, como sugere a filósofa Jeanne Marie Gagnebin.

É certo que “Aquarius” nos salva do esquecimento e nos leva a lembrar-recordar-rememorar por amor ao passado e, sobretudo, por amor ao presente e à sua necessidade transformadora: Fora toda e qualquer representação do oportunismo e da hipocrisia humana.

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João Carlos Gonçalves (Joca)

Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

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