Em 2020, o mundo da música foi abençoado por mais um álbum da artista Fiona Apple, 8 anos após seu último lançamento. Fetch The Bolt Cutters, a produção em questão, foi gravado ao longo de 5 anos, inteiramente na casa da cantora, utilizando apenas o GarageBand. Mesmo com a produção quase que amadora, o produto final virou um álbum fora do comum, com aspectos experimentais, uma pegada de rock e áudios inusitados, rendendo dois Grammys para a artista e uma nota 10 no site da Pitchfork.
Ainda que simples, a produção de Fetch The Bolt Cutters não deixou nada a desejar; muito pelo contrário, entregou coisas que eu nunca nem pensaria em pedir. Logo na primeira música o estranhamento já é grande, ela acaba com vocais da artista quase que gritando, parecendo um grito de golfinho. Os últimos 60 segundos da terceira música são compostos por latidos de cachorros, em partes ao fundo dos instrumentais, em partes em primeiro plano. Isso tudo, entre outras peculiaridades do álbum, mostra a vulnerabilidade da Fiona Apple, como o que ela está contando é algo, digamos, cru, assim como traz à tona o fato de que foi produzido inteiramente em casa, com essa “pegada” caseira.
Outra ferramenta muito utilizada é o uso (e até o abuso) de backing vocals. Ainda assim, isso não se dá por uma simples escolha da artista, é utilizado para mostrar a união das mulheres e como as experiências e problemáticas apontadas pela cantora em suas letras é algo compartilhado entre elas.
O álbum, composto por 13 músicas e com pouco menos de uma hora de duração, trata de diversos temas como feminismo, relacionamentos abusivos e/ou desarmoniosos (e as sequelas que deixam), a censura da mulher, bullying, paixão, raiva, padrões (tanto intelectuais e pessoais quanto estéticos), normas de gênero, romances, libertação de suas prisões, imposição, objetificação, sororidade, depressão, (im)possibilidade da monogamia, abuso sexual, términos de relações – românticas ou não. E esses foram só os temas mais explicitamente apontados, já que nas entrelinhas estão escondidos diversos outros.
Claramente, num álbum que trata de assuntos intensos, Fiona Apple não poupou nas letras. De uma forma chocante, a artista equilibra a agressividade com a sensibilidade no seu uso de palavras e melodias, criando um produto final inspirador, que faz com que você se sinta capaz de qualquer coisa, de vencer qualquer obstáculo. Tanto nas letras quanto nos sons, em momentos você se sente acariciado pela música, e em outros você sente como se ela estivesse te encorajando a bater em alguém. Isso se dá, provavelmente, pelo aspecto empoderador que o álbum traz do seu começo ao seu fim, já que, mesmo com as situações desagradáveis retratadas, mostra como as pessoas, em específico as mulheres, sempre superam o que tenta derrubá-las e como isso as torna cada vez mais fortes. Além disso, ela também aponta, sem medo, muitos desrespeitos e agressões, denunciando-as ao ouvinte.
A primeira música que eu ouvi do álbum foi Under The Table. Nela, a cantora conseguiu fazer uma metáfora muito reconhecível para qualquer um: “Me chute embaixo da mesa o quanto você quiser, eu não vou calar a boca“. Você não precisa ter sido chutado por baixo de uma mesa para entender o que está sendo dito. Basta você, em algum ponto, ter dito algo que você acredita, mas que acabou incomodando terceiros, que te “chutaram” escondido em uma tentativa de silêncio. No verso seguinte, ela continua se impondo “Esse vinho chique não vai apagar esse fogo“. No contexto da música, ela está rodeada de pessoas que, na hierarquia de poder de sua área de trabalho, estão superiores a ela, e por isso a censura por parte do seu parceiro. Mas, ao longo do álbum inteiro, ela conta, como alguém que viveu isso em primeira mão, como você deve se impor contra esse abuso de poder, que é algo tão comum.
O aproveitamento de homens em posição de poder contra mulheres que os enxergam como poderosos é algo muito mais comum do que deveria ser, tanto na indústria da música, quanto na vida no geral. A censura feminina nesses casos, o aproveitamento, a manipulação são explicitamente denunciados pelo álbum, tanto em uma forma agressiva, colocando em vista os comportamentos e ciclos nojentos propagados por esses homens, quando de maneira precavida, tentando ajudar mulheres seguindo esse mesmo caminho a verem o buraco em que podem cair. Ou até de forma triste, onde Fiona reconhece que muitos homens podem fazer a mente dessas mulheres sem experiência na indústria, de modo a fazer com que elas desvalidem tudo que a cantora está denunciando. Nesse caso, só vale lamentar o fato de que elas, provavelmente, vão ter que, assim como ela, chegar no fundo do poço para conseguirem sair.
É claro que, por ter sido escrito totalmente por uma mulher que tem uma vida longe de ser considerada perfeita (Fiona já admitiu várias vezes que algumas de suas inspirações para o álbum vieram das vezes em que ela foi assediada, relacionamentos abusivos que viveu ou vivenciou por terceiros, sua experiência na cadeia, suas experiências com vícios em diversas substâncias ou histórias terríveis de conhecidas que viveram situações parecidas), é compreensível que se pense que apenas mulheres se identifiquem com o que ela propaga, mas, na verdade, o álbum tem um pouco para todos.
Vivências femininas na sociedade são retratadas de forma impecável, mas você não tem que ser mulher ou ter sido assediada para se identificar. Todos já se sentiram menosprezados ou silenciados em algum contexto, ora por raiva de alguém, ora por sofrerem uma desilusão amorosa que os fizeram duvidar do amor, ora por ver alguém propagar sua vida como se fosse perfeita, ou mesmo por se sentirem perdidos em si mesmos. O álbum foi feito para qualquer um que entende como é se sentir assim.
Os significados do Fetch The Bolt Cutters acabam sendo bem circunstanciais. Uma mulher vai interpretar as músicas ouvidas à sua forma; um homem as compreenderia de uma forma completamente diferente. Quando eu o ouvi pela primeira vez, fiquei viciada. Era praticamente a única coisa que eu ouvia por semanas. Na empolgação, mandei o álbum para um amigo, pedindo para ele contar sua opinião depois que o ouvisse inteiro. A resposta dele, um dia depois, foi “Achei bizarro (e eu não o culpo, o estilo musical não é nada perto do usual); é bem pesado. Entendo que não é para mim, mas gostei muito.”.
Sinceramente, compreendo o que ele disse; realmente é um álbum por mulheres, sobre mulheres e para mulheres, mas não sei até que ponto o álbum não é para ele.
Arte não é produzida para um apenas um grupo ouvir; mesmo sendo um álbum para mulheres, ele não é apenas para mulheres. Na pior das hipóteses, alguém que não se identifica com o álbum pode olhar para ele com uma visão externa e usá-lo para entender uma vivência que não é a sua, refletir sobre acontecimentos que não os afetam diretamente, mas que, sem dúvida, afetam outro grupo. Ouvir uma denúncia de um grupo desesperado, desde que você não faça desse lugar de fala, o seu, é essencial para que a luta possa continuar. E, no final, todos podemos ser tão intensos e vocais quanto a Fiona Apple, e chorar ou rir ou gritar ou dançar ou cantar ou tudo ao mesmo tempo junto com ela.
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