Um conto de Koli

“O lorde, a aprendiz e o plebeu”

Devem ser dois plebeus que se afastaram muito de casa.

Posso usar um galho para espantá-los, se palavras não forem o suficiente. Meistre Garmon diz que a arma mais poderosa que eu posso ter é a minha língua. Como se luta com uma língua? Nunca vi um guerreiro lambendo seus oponentes.

Em meio a teorias e planos mirabolantes, ela se aventurou cada vez mais na floresta comedidamente, desviando de galhos e folhas ruidosas, sendo guiada pelo som incessante das vozes.

De certa forma, estava feliz por ter saído daquela sala. A biblioteca estava com a temperatura agradável, graças à lareira e aos tapetes. As poucas prateleiras estavam abarrotadas com pergaminhos, quase transbordando. Algumas novas estantes teriam que ser colocadas para caber tudo o que ela precisaria saber para ser uma meistre. 

Aquele lugar tinha um potencial astronômico para ser o lugar mais aconchegante de se estar no inverno, se não fosse o inferno particular de Ríonach.

Algum tempo depois, as vozes pareciam estar a poucos metros de distância, mas não via as cabeças. Haviam ouvido ela se aproximar? Bem, trabalho feito sem esforços maiores. Deu meia volta para voltar ao pergaminho, mas não deu um passo. Ouviu o som de algo batendo na madeira e uma risada, seguida de um “Eu ganhei!”.  

Arregaçou as mangas e virou novamente para a fonte de som. Não se importava se estava pisando em galhos ou ossos, era bom que a ouvissem para que já corressem. 

Viu duas figuras agachadas e de costas para ela em frente a uma tábua de madeira, onde duas gotas invertidas giravam e batiam entre si. Os dois garotos, um aparentemente mais velho que ela e outro mais novo, olhavam fixamente para os pedaços de madeira como se a vida deles dependesse disso, ignorando todo o exterior.  A maritimidade permitia que o inverno fosse menos rigoroso, como é no Norte, mas mesmo assim, o garoto mais velho deveria estar com um casaco mais grosso.

Um pedaço rodopiante bateu no outro, jogando-o para fora da tábua. 

—  Isso não é justo! Você ganha todas!  —  disse o mais novo, de cabelos mais claros.

—  Eu tenho anos de experiência, Munim, e comecei bem depois de você. Então, se continuar treinando, quando chegar na minha idade, vai ser o campeão das Ilhas de Ferro.

Sete infernos!

O menino mais velho era Hugin Kamuy, o filho mais velho e herdeiro da Casa Kamuy. O que ele estava fazendo no meio da floresta com um garoto qualquer? 

Ríonach saiu de seu esconderijo. Deu dois passos antes que o garoto encasacado virasse para ela num pulo só. 

— I-Irmão…

Hugin lentamente se levantou e olhou para a aprendiz. Olhando- a de cima a baixo. Ele não era muito alto para sua idade, mas era maior que ela.

— Acho que já a vi pelas torres, milady. —  deu um passo em direção a ela, colocando aquele que responde como Munim atrás de si.

— Meu nome é Ríonach e eu não sou uma lady.

— Ríonach… —  ele ponderou o nome, como se estivesse procurando por ele numa enciclopédia. —   Você é a sobrinha do Meistre Garmon, não? 

— Aprendiz. —  O olhar dela recaiu sobre as peças de madeira. —  O que vocês estavam fazendo?

— Briga de pião! – Munim disse animado. — Já jogou pião antes?

— Ladies não brincam com essas coisas, Munim. Elas tecem e brincam com bonecas. 

Ríonach sentiu uma pontada de dor quando o lorde disse a última frase. A única coisa que ela sabia tecer era carne humana, suas bonecas eram e seriam cadáveres onde ela estudaria suas partes para ser a meistre que almejava ser.

— Já disse que não sou uma lady, sou uma acólita, aprendiz de um meistre.

— Você é uma garota —  Hugin disse. — E não existem meistres garotas. 

— Ainda. Logo, logo vou formar meu primeiro elo e, quando der uma volta inteira, serei uma meistre.

— Se você diz… – o lorde riu.

Ríonach resolveu ignorar. A mente dos garotos nunca foi a mais rápida. Esticou a cabeça para ver o menino mais novo e sorriu para ele. Olhou-o com mais calma e ceticismo.

Aquelas roupas eram muito grandes para ele. A pelagem de urso era valiosa demais para alguém da origem dele sem ter sido roubado. Provavelmente era o casaco de Hugin no menino. Que tipo de ligação eles teriam para que o lorde deixasse de se aquecer para que um plebeu não congelasse?

O garoto disse algo sobre irmãos. Impossível. Lady Miranda só teve dois filhos – Hugin e Traum. Talvez fosse um filho de outro casamento do novo lorde.

Os olhos eram do mesmo tom dos tapetes de junco que tinha no quarto. A pele lisa contrastava com as mãos calejadas. Ele não parecia ter mais de sete anos e já trabalhava. Um filho de lorde não seria tratado assim. Um bastardo?

— O que é um pião? — disse a Munim. Empurrou o lorde um pouco para o lado, o suficiente para que pudesse andar até o garoto e levar o peito até os joelhos e os abraçou, sem tirar ambos pés do chão. 

Não tirou os olhos do pedaço de madeira, mas tinha fortes suspeitas de que o lorde a olhava com descrença. Mais tarde ela lidaria com as consequências do desacato, junto ao milho. Um corpo leve se jogou do outro lado da madeira e ajoelhou, pegando os dois pedaços de madeira que antes rodopiavam.

— Isso é um pião. Você pega ele assim, amarra a cordinha,  —  ele explicava enquanto fazia – pega distância e joga! —  O pedaço de madeira voou da mão dele e vinha em direção ao rosto da acólita. Ela levantou os braços numa tentativa falha de se defender, perdeu o equilíbrio e caiu de bunda no chão, revelando a ponta das faixas em seus joelhos brevemente.

O pião fez uma curva drástica de última hora, caindo na tábua de madeira

à sua frente, rodopiando. 

Curvou-se sobre o objeto e o analisava. Era hipnótico. A força centrípeta e a inércia eram o que mantinha o pião girando. Queria encostar, mas acabaria com o segundo fenômeno. As circunferências feitas pela ponteira que encosta no chão aumentam até que a lateral encostou na tábua e o pião rolou para fora dela. 

Foram poucos segundos, mas aquilo… isso foi..

— Fascinante. Faça de novo —  disse levantando os olhos para o garoto. O simples movimento das orbes as fez arder. Não havia piscado uma vez sequer enquanto o pião girava. — Faça de novo, por favor.

O garoto sorriu e repetiu o processo de antes, jogando o pião um pouco mais próximo da borda. Percebeu que, depois de algum tempo, o atrito supera as outras forças e a gota invertida começa a tombar. 

Dessa vez, o feitiço não teve tanto efeito e estava mais atenta ao seu redor.  Hugin estava à sua direita, encarando fixamente numa forma estúpida de intimidação.  

Se você contar para alguém, eu destruo as suas mínimas chances de algum dia se tornar um meistre- sussurrou em seu ouvido.

Ela o ignorou. 

E se contar, sua palavra perto da minha é uma formiga perto de um dragão. 

— Os dragões foram extintos durante o reinado de Aegon III. Formigas ainda existem, pelo menos —  retrucou e olhou-o nos olhos com mais audácia que pensava ter. — Não adianta ser tão grandioso se algum dia virar do tamanho de um cachorro de madame para então desaparecer da face dos continentes.

Hugin soltou ar num riso de escárnio. Ajeitou a postura – um sinal claro de que aumentaria o tom de voz para impor autoridade, mas não chegou a soltar uma sílaba.

— Não sou dedo duro, milorde —  ela continuou. — Não vou contar para sua mãe — o pião começava a perder para o atrito — com uma condição.

— Tava demorando. Diga, acólita, o que você quer? Minha sobremesa por um ciclo lunar?

Ríonach voltou a olhar para o pião no mesmo instante que ele girou para fora da madeira e caiu em sua frente. Pegou-o e aproveitou a pausa dramática.

— Quero brincar com vocês —  girava o objeto lentamente entre seus dedos, averiguando as marcas de tempo na madeira. — Quero que você me resgate das aulas chatas do Meistre Garmon para brincar — estendeu o objeto para o lorde.

Hugin olhou o pedaço de madeira com receio. Uma cautela madura demais para alguém tão verde. Mesmo depois de tanto tempo convivendo com ele e servindo-o,  era a primeira vez que a menina via o quão profundas suas olheiras e preocupações eram. Estava disposto a pegar uma gripe se o aquecimento de Munim dependesse disso. Carregava muito mais do que as responsabilidades de um lorde, mas a de protetor. Quase como um pai.

— Como posso saber se você não vai me dedurar para minha mãe?

— Eu prometo se você prometer. 

— Vocês podem devolver o meu pião? — O menino bastardo olhava para o pião na mão dela impacientemente.

— Pegue o meu, irmão. 

Não precisou falar duas vezes antes dele agarrar o pedaço de madeira. Ríonach notou que ambos eram bem distintos — o de Hugin era menor e mais desgastado do que o do irmão. Munim já quase arremessava o pião quando a garota e o lorde voltaram ao seu monólogo.

— Lady Miranda uma vez me disse para prometer apenas as coisas que posso cumprir, que eu devo manter minha palavra para que ela tenha algum valor.

A expressão do menino pareceu suavizar, mas ainda tinha receio. Usar a carta da mãe dele foi uma boa ideia. Foi, na verdade, uma frase que ela ouviu durante uma visita à cidade. O dono da taverna local, seu Harrin, disse isso enquanto enxotava um bêbado no início da manhã.

Não tinha o costume de sair das torres. Às vezes saía para tomar um ar do alvorecer quando sua janela não era o suficiente, inspirar o gélido amanhecer e se arrepender momentaneamente, mas voltar no dia seguinte para fazer o mesmo. Tudo o que precisava estava lá dentro; suas roupas, comida, livros… 

Ou pelo menos o que achava que precisava. 

Por favor, por favor, pegue o pião.

O pião de Hugin, agora com Munim, parou de girar e o garoto começou o ritual com um pouco mais de dificuldade que antes. Não estava acostumado com um tão pequeno, ou uma corda tão fina.

Não teve outra chance: ao arremessar o pião novamente, o objeto não caiu na tábua, nem soltou da corda. O brinquedo voltou com tudo na mão dele, com a ponta virada na direção do movimento, arrancando a ponta do polegar. 

O garoto soltou um grito de dor que encerrou o diálogo-não-tão-ameaçador no mesmo instante. Hugin virou para o garoto e, inutilmente, tentou acalmá-lo.

— Não grite. Vão descobrir a gente. Não está doendo tanto assim. Você é um garoto forte, isso é fichinha —  Ríonach não sabia se o lorde estava calando o irmão, acalmando-o ou se acalmando. Qualquer que fosse a alternativa, deu errado. Os prantos de Munim ecoavam pelas árvores, ele segurava a mão ferida pelo punho e curvou-se em posição fetal. 

Até onde seu olhar poderia alcançar, não havia machucado o suficiente para tanto alvoroço. Aqueles calos pareciam carregar muito mais dores do que aquele pedacinho de dedo voador. Uma faixa faria o serviço. E talvez algo para calar a boca dele.

Ríonach largou o pião e avançou na direção do menino, mas uma mão a interrompeu no meio do caminho.

— Me deixa ver o machucado —  o lorde olhou naqueles orbes amarelos. Entendia muito bem de máscaras, mas os olhares raramente escondiam suas verdadeiras intenções. E ele não viu nenhuma malícia nela.

Ele tirou a mão de cima dela e permitiu que se aproximasse. O corte era maior e mais profundo do que pensava. A unha do polegar com certeza cairia. As unhas estavam roídas e o fato de não estarem sangrando por isso a surpreendiam. Precisaria de algo para a dor também.

— Não é grave, só um machucadinho. Logo, logo vai sarar. Só preciso pegar umas faixas no meu quarto.

Lembrou da voz do meistre mais cedo.

Analgésicas.

Olhou os arredores pelo típico bulbo verde. Precisava da papoula ainda não florescida. Não havia nenhuma por perto. Dificilmente cresceriam no inverno de forma silvestre. Um fragmento de memória atravessou sua mente. Garmon tinha um canteiro de papoulas no quarto. 

Pegou uma ponta da capa que circundava Munim e enfiou na boca do garoto. Sussurrou algumas palavras que o lorde não entendeu, mas compreendeu que ela voltaria logo, então abraçou o menino e acariciou sua cabeça.

“Cuide dele para mim”, gesticulou com os lábios antes de partir. 

Era como se, a cada passo que dava em sua corrida, dez agulhas eram enfiadas em seus joelhos. Não posso parar. Não posso diminuir. Não está doendo, não está doendo. A dor está na minha cabecinha. E nos meus joelhos, completou ao notar umidade em suas faixas. Trocaria-as quando anoitecesse.

No caminho, ouviu passos atrás de si. Não eram pesados como os dela, então com certeza não era um adulto. Virou-se no próprio eixo em busca da fonte do som. Precisou de três voltas e um “Quem está aí?” para que a figura desconhecida se revelasse.

Continua…