No começo do semestre o Spotify, aleatoriamente, me recomendou a trilha sonora de um filme que eu não via há anos. Eu, confiando no algoritmo que me conhece mais que muita gente, segui a dica. Depois de ouvir e perceber como as músicas eram bonitas, decidi levar a recomendação um pouco além e rever o filme Onde Vivem Os Monstros, do Spike Jonze, todo. Foi aí que eu percebi que o algoritmo realmente me conhece como ninguém, porque, após tê-lo reassistido, senti algo que eu nunca tinha sentido antes: eu senti quase que uma necessidade de escrever sobre ele.
O filme conta a história de uma criança, Max, que se sente frustrada com sua vida e sua família, depois de ter que ver a mãe dividindo sua atenção entre ele e o novo namorado e a sua irmã escolhendo sair com os amigos a brincar com ele, e foge de casa, sem um caminho aparente. Ele atravessa uma floresta e o mar e acaba chegando em uma ilha, onde encontra sete animais enormes e desconhecidos, e, para que eles não o devorem, fala que é um rei e passa a governá-los. Max acaba gerando laços muito fortes com todos os monstros, especialmente um chamado Carol, que vira seu amigo mais próximo, assim como com uma chamada KW, que toma um lugar mais parecido com o de uma figura protetora ou paternal.
A história é baseada em um livro infantil bem conhecido nos Estados Unidos, de mesmo nome. Em primeiro momento, o filme foi distribuído como um filme infantil, com o público-alvo sendo crianças, mas depois de péssima bilheteria e algumas críticas, mudou seu foco e começou a ser distribuído para adultos. É fácil perceber que, mesmo sendo um filme sobre a infância, ele definitivamente não foi feito para crianças.
Max, como todas as outras pessoas, só queria se sentir querido e importante para sua família e garantir que as pessoas ao redor dele estivessem sempre felizes. Quando fugiu, por não saber lidar com a frustração de decepcionar sua mãe e não ser o centro das atenções, encontra um lugar onde ele se sente importante a ponto de ser, literalmente, considerado um rei, então garante que vai manter todos lá felizes (especialmente visível quando Douglas lhe pergunta “Você vai manter toda a tristeza para fora?” e ele afirma que vai, com seu escudo anti-tristeza).
Essa é uma das partes que mais me marcou no filme, porque retrata algo muito verdadeiro na vida de toda criança, que é fazer de sua maior missão trazer a felicidade àqueles ao seu redor, mas que sempre acaba em decepção ao longo dos anos, pois chegamos à inevitável conclusão que esse poder não é possível ou alcançável. Assim, quando Max não consegue cumprir sua promessa, e assiste Carol ter uma crise de ciúmes e decepção igual à que engatilhou sua fuga no começo do filme, ele entende que nunca vai conseguir garantir que as pessoas que ele ama estejam sempre felizes, mas que não precisa fazer isso para amá-las. Acho que em algum ponto de nossas vidas, todos passamos por essa realização.
Além disso, lidando com Carol, ele conseguiu ter uma visão externa de si mesmo, vendo suas próprias atitudes em terceira pessoa, já que o monstro também queria fazer de tudo para garantir a felicidade de seus amigos, e sentia ciúmes de pessoas que não eram parte de sua “família”, o que o ajuda a se entender e aprender a se expressar melhor.
Esse filme também aborda e reflete sobre diversos assuntos relacionados à infância, como a criatividade e ingenuidade das crianças e como esses aspectos são censurados ao longo do tempo e o sonho que toda criança tem de ter seu próprio reino (mesmo que isso se mostre de forma realista até demais, logo se provando totalmente insustentável). São trazidos assuntos como divórcios e brigas parentais pela ponto de vista infantil (criando, ao meu ver, um paralelo entre os pais divorciados do Max e as diversas brigas entre os monstros que viram seus amigos, KW e Carol, o que o ajuda a entender as situações) e a incapacidade da criança de lidar com isso.
Fala, além desses, da falta de experiência das crianças para entender e lidar com seus próprios sentimentos, o que gera diversas sobrecargas emocionais (uma vivenciada por Max e depois observada por ele através de seu amigo Carol) e o primeiro contato com o existencialismo, retratado quando Max descobre que o sol, algum dia, vai morrer, assim como ele e todos que ele ama, e que não há nada que ele possa fazer sobre isso.
Uma das coisas mais bonitas do filme é que, mesmo tratando de todos esses assuntos que são tão difíceis de se abordar, principalmente com crianças, Spike Jonze consegue fazê-lo de forma madura, sem diminuir suas profundidades por estar tratando com crianças, e realista, mesmo que usando um cenário fantasioso com monstros que falam. Além disso, ele consegue manter o ar de curiosidade, criatividade e ingenuidade infantil vivo durante o filme inteiro, como, por exemplo, quando Max conta para Carol que o sol vai morrer, e ele responde falando que algo tão insignificante e pequeno como o sol não deveria preocupar um rei.
Acho que se eu fosse uma criança assistindo esse filme, eu o odiaria por tratar de alguns assuntos de uma forma meio assustadora, como com as constantes ameaças de que Max será devorado, e foi isso que causou a inicial rejeição do filme, mas realmente não imagino que as crianças tenham sido o público-alvo do Spike Jonze ao fazê-lo. O filme mostra muito como as crianças aprendem lições de vida importantíssimas sem perceber e como a visão de mundo infantil é, muitas vezes, tão inteligente, perspicaz e criativa quanto (senão mais que) a adulta.
Where The Wild Things Are é um filme que me fez refletir bastante sobre quem eu era e como eu via a vida quando tinha 5 anos e quem eu sou hoje, e como eu, sem querer, fui deixando para trás aquilo que eu era ao longo dos anos.
Vou terminar esse texto com uma das minhas falas preferidas do filme, dita por Carol quando ele explicava ao Max que seus amigos não costumavam ir mais visitar a maquete que ele havia construído, já que foi uma das cenas que mais me emocionou e é uma das coisas mais maravilhosas ditas durante o filme todo.
“A gente ia fazer um mundo inteiro assim. Todo mundo costumava vir aqui, mas sabe como é… Sabe aquela sensação de quando todos os seus dentes estão caindo e você não percebe, até que você percebe que, bem, eles estão muito longes uns dos outros. E aí um dia… Você não tem mais dentes.
É, foi assim.”
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