#Tárolando por Luiz Filipe Motta
Desenhos animados no cinema são quase sinônimos de piadas clichês com uma moral batidíssima, numa sala cheia de crianças rindo e gritando, com seus pais entre a alegria de ver os filhos se divertindo e a angústia de ter de assistir ao filme junto a eles. Salvo as produções de maior qualidade, ou recheadas de piadas que as crianças não entendem (como essa cena do excelente Shrek), a maioria das animações deixa de ser atrativa a partir de certa idade. Só a nostalgia faria um adulto voltar aos desenhos. Ou um desenho animado que aborde temas adultos.
Essa é a proposta do filme “O Gato do Rabino”. Cunhada a partir da premiada obra homônima do quadrinista Joann Sfar, o qual participa da produção do filme como corroteirista e codiretor, a animação se passa na Argélia dos anos 20. Com rica ambientação, a história narrada é a do rabino Sfar, que vive com sua filha Zlabya e seu gato, cujo nome não é revelado, mas pouco importa diante da irreverência do felino, que se torna o astro do filme a partir do momento em que engole um papagaio e, por isso (cientistas que se mordam), adquire a capacidade de falar. O gato começa então a manifestar seus pensamentos, e as bem desenvolvidas falas caracterizam uma imagem típica dos felinos: o egocentrismo, a sagacidade e a teimosia transbordam; tudo isso com uma personalidade extremamente cativante.
De início, o gato não se conforma com as crenças de seu dono, citando inclusive o teste Carbono 14 (teste científico para calcular a idade de materiais como fósseis, por exemplo) para refutar dogmas do judaísmo. Entretanto, depois, decidido a se converter ao judaísmo, o gato trava um interessantíssimo diálogo com seu dono, o qual tem que consultar seu superior sobre a conversão de animais. O próprio mascote narra a conversa entre o rabino e seu superior: “Pergunto-lhe qual a diferença entre um humano e um gato. Ele me responde que Deus fez o homem à sua imagem. Peço-lhe que me mostre uma imagem de Deus. Ele me diz que Deus é uma palavra. Digo ao rabino do rabino que, se o homem é semelhante a Deus por saber falar, eu sou semelhante ao homem. Ele me diz que não. Porque minha palavra é má. Porque eu a adquiri num ato de morte. Digo-lhe que isso não é verdade, que não comi o papagaio. Ele me diz que, além disso, sou um mentiroso.”
É nesse ponto que o desenho animado ultrapassa a infantilidade. Esse evento em particular e vários outros que se seguem a partir de então trazem à baila questões como a pluriculturalidade e os mistérios da fé e da religião. Por exemplo, surge na história um pintor russo determinado a conhecer os judeus negros da Etiópia. Junta-se ao rabino e ao seu grupo (que, além de seu gato, de sua filha e de seu primo, inclui ainda um muçulmano) numa jornada a uma Jerusalém perdida na África. Tudo isso numa animação franco-austríaca, baseada em quadrinhos franceses e desenhada por norte-americanos, europeus e japoneses.
O filme está em cartaz desde 24 de agosto e tem classificação etária de 12 anos, devido a cenas de sexo e violência e a um humor ácido, o que o diferencia dos desenhos animados da criançada. Dirigido por Antoine Delesvaux e roteirizado por Sandrina Jardel, além da participação de Joann Sfar em ambas a áreas, o filme, ganhador do prêmio de melhor animação na 37ª Edição dos Césares e do Grande Prêmio do Festival de Annecy, vale o ingresso, nem tanto pela animação em si, que é apenas “bonitinha” e satisfatória, mas muito mais pela ideia bastante curiosa e pela discussão que propõe. O gato tagarela do rabino é tão sábio quanto o Grilo Falante do Pinóquio. Entretanto, em vez de dar conselhos, ele incomoda.
O @NewronioESPM é mais animado que qualquer desenho.
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