Em uma manhã de sábado, acordei com um cheiro de ovos mexidos com mortadela; estaria mentindo se dissesse que foi apenas o odor do café da manhã o responsável pela dura tarefa de me fazer abrir os olhos em um final de semana. Também havia algo molhado e gelado encostando em meu ouvido, nariz e boca, não apenas um, mas vários focinhos nada delicados me interromperam o sono que tentava colocar em dia.

Depois de recuperar a consciência quase que instantaneamente com as cócegas geladas, sentei na beirada da cama e comecei a fazer carinho nos seus pelos enquanto contava: um, dois, três… dez, onze, doze… Tinha a sensação que a cada manhã a contagem aumentava, não apenas pelas caudas que balançavam iluminadas pela luz difusa das cortinas, mas também pelo barulho das patas no chão de madeira, que mantinham a casa acordada durante a noite e entravam em meus sonhos quase como uma trilha sonora.

O cheiro do café tomava conta do ar e, quanto mais me aproximava da cozinha, maior era a vontade de saciar a dor matinal do estômago. Ao abrir a porta da cozinha, uma surpresa: não havia mais ninguém lá, apenas um prato repleto de ovos mexidos, colocado em cima do balcão, onde os cachorros não podiam alcançar. Enquanto comia e repartia a mortadela em vários pedaços, um aviso surgiu na Alexa.

– Bom dia! Não se esqueça que vamos viajar semana que vem; precisa achar um lugar para os cachorros.

Confesso que a viagem nunca deixou de passar pela minha cabeça, mas, nas últimas semanas, estava tão entretido com os cachorros que não conseguia encontrar um lugar na minha mente para passar meu tempo livre. 

Terminei de comer e fui realizar meus afazeres matinais: colocar ração, tomar banho, fazer a barba, colocar ração, ler o jornal, repor a água, fumar um tabaco e, finalmente, separar as coleiras para ir passear. Além da surpresa em forma de recado, não houve nada de diferente; esquentei a lasanha, assisti a um filme, tomei outro banho e separei as coleiras novamente. 

No cair da noite, quando estava quase cochilando no sofá, toca outro recado.

– Estou saindo do trabalho, daqui a uma meia hora eu chego no cinema, já comprei nossos ingressos.

Não me lembrava disso, mas também não duvido, minha memória nunca foi lá essas coisas. Tomei outro banho rápido, me troquei, chequei se havia ração o suficiente para a noite e entrei no carro. Mas que erro! Esqueci a jaqueta para aguentar o frio do cinema, saí correndo e voltei para casa, ouvi todos os latidos de costume, enquanto pegava a jaqueta no encosto da cadeira, mas algo estava errado, faltava algo.

De todos os latidos, não ouvia um, o mais agudo, e que, geralmente, era o mais animado de todos. Um desespero repentino tomou conta do meu corpo e procurei por aquele cachorro por tempo o suficiente para me atrasar. Talvez tivesse fugido, mas não era de sua índole fazer isso; tampouco gostava de se esconder.

Após horas, o encontrei: estava deitada debaixo de uma poltrona antiga no escritório, com seu focinho inchado e quente, o latido agudo se transformou em um pequeno choro, que parecia mais alto do que todas as dezenas de latidos que acompanhavam minha vida. 

Depois de muito procurar por algo errado, finalmente encontrei: um pequeno ferrão na pata direita; alguém havia brigado com uma abelha e, mesmo saindo como vencedor, acabou ficando com uma péssima alergia. Não tive outra opção: peguei a jaqueta já me preparando para o pior e, em questão de minutos, estávamos no veterinário do centro da cidade.

O diagnóstico foi rápido e simples, nada preocupante: só precisava de amor e cuidado, além de uma aplicação de pomada diariamente, por duas semanas. Por sorte, sequer precisei usar a jaqueta, o frio das mesas de alumínio e dos azulejos ficou de lado pelo esforço de carregar meu amigo para cima e para baixo.

De volta a minha  casa, me lembrei do compromisso que perdi; fiz questão de tentar explicar, mas sua porta estava trancada, tentei ligar, mas o telefone estava desligado. Não tive alternativa a não ser deixar um recado; tentei o meu melhor, mas minha voz trêmula embaralhou tudo.

No dia seguinte, acordei novamente com os focinhos gelados me fazendo cócegas, dessa vez sem o cheiro dos ovos mexidos e da mortadela; fiz meu próprio café e segui minha rotina como de costume.

Meu amigo melhorou mas, para minha surpresa, outra picada de abelha surgiu em seu irmão; fiz o mesmo: peguei a jaqueta e fomos ao veterinário, comprei a pomada e retornamos para casa. Durante essa semana que precedia a viagem, uma nova picada surgia a cada dia, talvez a casa estivesse com uma infestação de abelhas ou, talvez, os próprios cachorros estivessem desenvolvendo ferrões para se picarem. 

Foi uma semana difícil, poucas horas dormidas, afinal, não podia atrasar a aplicação da pomada, mas, principalmente, por ver todos cabisbaixos e sem conseguir levantar direito. 

Sábado, tudo parecia normal: focinhos gelados e cócegas, o cheiro de ovos mexidos havia voltado, pensei que estava tudo bem, após uma sequência de carinhos, decidi levantar e ir tomar meu café. Ao abrir a porta ouço um recado.

– Encontrou um lugar para eles?