Aspecto de Deméter

Ela não mentiu que ia explicar muita coisa. O cérebro de Liliana ainda processava a parte dos deuses. Deméter era uma deusa mesmo? Tipo, Zeus e todos os outros da mitologia? Ela me ajudou no dia em que me perdi porque precisava de um herdeiro, não porque queria ajudar? Por que eu? O que seria forte o suficiente para adoecer um deus? Um veneno?

Não. Se Deméter era a reencarnação da Deméter, então de certa forma ela é a natureza. A forma mais fácil de atingi-la seria atingir a flora. Ela sentiria uma pá como se fosse uma estaca. E se eles são Escolhidos…

Meu deu… Meus deuses, o que eles sabem?

Foi um longo minuto até que seus pensamentos processassem tudo, por mais que não soubesse o quê havia processado. Ela deu um longo gole do seu chá, ainda quente, mas não pareceu se importar com a temperatura, umedecer a garganta era sua prioridade. Mas o que tinha pra falar?

— Eu…

— Você tem a escolha de não querer, é uma decisão que pode, não, que vai mudar sua vida. Você já viu Matrix, Lili? — a menina negou — Existem duas pílulas, aqui elas são hipotéticas, uma azul e uma vermelha. Se você escolher a azul, você vai continuar sua vida como se nada tivesse acontecido, segura com sua ignorância. Mas se você escolher a vermelha, você pode tornar esse mundo um lugar melhor do que o encontrou.

— É uma responsabilidade muito grande, senhora — assim que disse o vocativo, Deméter se encolheu na cama. — Eu preciso pensar.

— Tudo bem, querida, é só que… sua individualidade é relacionada à flora e eu pensei que…

— Eu não sabia como te ajudar — lembrou do cesto desaparecido, cheio de mato.

— Você tentou, pelo menos. Por quanto tempo você ficou fora? Umas 5 horas? Ficou todo esse tempo procurando alguma coisa que pudesse ajudar e, querendo ou não, você encontrou gente que tentou ajudar —  ela abaixou a cabeça novamente, mas sua voz agora carregava culpa. Muita culpa. — Eu só fiz isso para te distrair.

— Eu poderia ter ficado todo esse tempo aqui, cuidando de você. 

— O que isso iria mudar? A culpa do que aconteceu comigo não é sua, entende?

— Isso vem acontecendo com os outros Aspectos também? — Ayla disse, no canto do cômodo.

— Não — Deméter teve mais uma crise de tosses, muito piores que as de antes. — Sou mais eu. Tudo o que vem acontecendo tem afetado o meu estado de saúde; os dias têm durado menos, eu recebo menos sol, as colheitas de hoje em dia estão cheias de pragas, tem a Praga do Pão e et cetera. Tudo isso veio se acumulando até um ponto que se tornou irreversível.

— Desculpe perguntar, Vossa… — Daniel coçou a parte de trás da cabeça e Deméter riu baixo.

— Pode me chamar só de Deméter, não precisa de formalidades.

— Ah, desculpa..

— Não precisa se desculpar também, Daniel. — Essa risada, mais alta e alegre que a última, lhe custou ar, gerando outra crise de tosses. Liliana a deitou novamente na cama e cobriu até o pescoço, mas ela tirou os braços de dentro do cobertor.

— Você sabe se alguma delas pode te ajudar? Nós podemos conversar… — Deméter o interrompeu antes que continuasse com a frase, já negando.

— Se eu conheço bem a Sol, Lua, Estrela e Crepúsculo, elas estão brigando entre si de novo. Aliás, eu sou um Aspecto Menor, elas não se importam tanto comigo assim.

Os futuros heróis se entreolharam e isso só confirmou o palpite da deusa.

— Só saibam que vocês são muito especiais. Não é comum elas darem presentes, como um colar ou essas corujas — ela volta a fazer carinho no nada, mas dessa vez o “nada” era em cima de seus ombros. Liliana gesticula com a boca “É a febre?” e Alex que nega com a cabeça. — Enfim, Liliana, é só… você teria que aprender coisas que eu não terei tempo de te ensinar. Isso seria um pequeno empecilho no seu caminho…

— Você vai ter sim, você vai melhorar. — Quem ela queria enganar? Todos daquele quarto sabiam que Deméter estava mais para lá do que para cá, inclusive ela mesma.

— Ah, Lili… eu aprecio sua esperança, mas eu não vou… — acariciou seu rosto com o polegar. — Vocês são crianças bem especiais, eu já disse isso, e acho que você deveria ir com eles, Lili. Não sei se você quer ou se sua mãe te deixaria ir, mas seria uma chance de você aprender a controlar suas habilidades melhor.

— Ela vai odiar a ideia, ela não vai deixar. Ela com certeza não vai deixar.

— Você poderia tentar pelo menos..

— E falar o quê? — cuspiu — “Mãe, eu vou me tornar a próxima Deméter, mas eu preciso ir para uma escola de super heróis e terminar que nem o papai”,  o que você acha?

Ela abaixou o olhar, envergonhada.

— Olha, eu só… não acho que vá dar certo. Minha mãe abomina o fato de eu já ter sonhado em ser heroína, especialmente depois do meu pai. — Um flash de memória lhe veio com a menção ao pai: eles brincavam de super-herói, ele a levantava no ar numa posição que a fazia se sentir voando e logo depois a “Super Lili” o salvava.

— Desculpe, de novo, Voss… Deméter, mas por que Hermes? — Daniel perguntou, servindo um pouco de chá numa xícara.

— Hermes?

— Por que Hermes deu poderes ao Z?

— Quem é esse Z que vocês tanto falam? — Liliana perguntou e Alex sentou-se ao lado dela e sussurrou que explicaria tudo mais tarde.

— É difícil responder a essa pergunta porque… Hermes pode ser muitas coisas diferentes. Os Aspectos não são exatamente como é representado na mitologia. A gente tem alguns nomes que se encaixam mais ao que somos, mas Hermes não é só Hermes. Hermes é o Deus Mensageiro. Aquele que traz a mensagem seria Hermes. No entanto, não me lembro de ter conhecido nenhum Hermes.

Nicholas tira o chapéu e coloca no peito.

— Minha Senhora Deusa…

— Lá vem… — Alex murmura.

— Não sou muito bom em falar com deuses, comecei com isso faz um pouco mais de um ano, mas a senhora foi muito simpática e fico muito triste que a senhora vai se ir deste mundo. Eu não garanto nada, mas a Lari é uma boa professora e a galera aqui é gente boa. Se a Liliana quiser, ela pode treinar com a gente — seu olhar cai sobre Liliana. — Sei que tem esse rolê com a sua mãe, mesmo eu não sabendo como é ter uma, mas nós podemos convencer ela. Se você realmente for se tornar um Aspecto, estudar no André Andrari te ajudaria a controlar melhor. Quem sabe tenha outro Aspecto que não conheçamos lá. Enfim,  — ele voltou a olhar para Deméter — obrigada, Senhora Deusa. Amém.

Deméter dá um sorriso fraco e acena com a cabeça.

— Eu vou ficar bem, aonde quer que eu vá, mas cuidem bem da Lili quando eu não puder.

Alex se levanta, não engolindo o papo de sua paciente já ter aceitado a morte. Ela não morreria enquanto Alexandra Isayev estivesse naquele quarto. Deméter percebe as intenções dela, deve ter sido mãe em algum momento de sua vida, então logo olhou com severidade, que acompanhou seu tom de voz.

— Alexandra, às vezes não tem o que fazer. Qualquer esforço que você faça será em vão. Adiar o inevitável, sabe?

— Mas ela — gesticula com a cabeça para Liliana — precisa de tempo.

— É muito difícil bater as botas sem deixar um Escolhido. Se ela recusar, eu terei que procurar outra pessoa e correr contra o tempo. Rezar para que encontre alguém que queira, mas eu dou meu jeito. Se preocupe com você, Alex — ela sorri, cada vez mais fraco e rápido. Seus olhos já não conseguiam mais manter-se abertos. — É o natural, isso ia acontecer de alguma hora… — Deméter adormece antes de terminar a frase, com um suspiro profundo.

— Pô, esquecemos de falar da mulher das facas — alguém soltou, quebrando completamente o clima. 

Alex sai correndo do quarto, aos prantos. A professora a segura no meio da escada e a abraça, dizendo que ela só estava dormindo, não morta, mas ela se soltou do abraço e saiu da casa, ainda chorando. Alguns amigos s a seguiram, sobrando apenas Daniel, Deméter e Liliana no quarto

— O Aspecto que deveria ser o mais benevolente é o que mais foi afetado pelo conflito dos Aspectos — Daniel comentou, mais para si do que para elas. — Não é justo os bons serem punidos como os mais cruéis. — Ele sai do cômodo, visivelmente abalado.