— Alex, você realmente não vai beber? —  uma voz masculina se sobressaiu, mas logo foi acompanhada por alguns burburios. O aperto afrouxou e Liliana viu-se abaixando seus braços. Essa voz parecia… jovem. 

Depois de um tempo, viu as silhuetas mais definidas, parcialmente escondidas pelos troncos de carvalho. A mais anterior cambaleava levemente e carregava algo semelhante a uma garrafa de uísque, já na metade. A mesma mão ocupada foi levantada num aceno.

— Opa, salve! — agora Liliana sabia a quem pertencia a voz sobressalente. 

Qualquer mecanismo de sobrevivência, instinto animal, habilidade marcial que aprendeu com filmes de ação esvaiu-se num piscar de olhos. O bastão voltou a ser o galho mixuruca que realmente era. Só restava rezar para que eles não fôssem do governo e a levassem para longe de sua mãe e usassem sua individualidade para criar bombas bioquímicas, ou pior, eles poderiam ser traficantes e a usassem para criar drogas até drenar a última gota de poder que tinha e então traficar seu corpo.

Ficou tão perdida em seus pensamentos que não percebeu um grupo de jovens na sua frente, um deles chacoalhando a mão na frente do seu rosto. Este tinha um chapéu de palha gigantesco, mas ainda podia-se ver os cabelos louros do menino que o portava, junto com um cheiro inacreditavelmente forte de álcool e um sorriso que Liliana não conseguiu identificar exatamente o que era.

Não vacila, não vacila.

— Ah.. O-oi…? — ela vacilou.

— Salve! — o loiro do chapéu levantou novamente a mão com o uísque e sorriu calorosamente. —  Quem é tu?

Involuntariamente, a jovem dá alguns passos para trás, dominada pela confusão e assustada. Deveria mentir? E se fossem do governo?

— L-Liliana… —  sussurrou hesitante, mas não tanto como continuou —  Quem é… — juntou coragem para tirar os olhos do loiro alcoolizado para contar quantas pessoas havia ali. Oito. Oito adolescentes —  Quem são vocês?

— Pera.. Nic… — um garoto mirrado atrás do chapéu começou, mas esse cara da frente o interrompeu. Ele deve ser o diplomata desse grupo, o que fala por todos.

— Eu sou o Nicholas — finalmente, um nome! —  Aquele maluquinho ali de… com carinha de animal é o Dani e… esse aqui é o nosso grupo! — Nicholas exclama a última parte como se estivesse gritando “surpresa!” em uma festa de aniversário que ele mesmo organizou. E o único presente que Liliana recebeu foi uma baforada de uísque na cara. O “Dani” ficou claramente incomodado com a descrição do amigo — Aquela ali com carinha de alien, ali ó — ele apontou como se a garota estivesse a metros e metros de distância — é a Ayla, e ela não bebe, ela é careta. Ela prefere sorvete. — Ele dá mais um gole.

Dani, que Liliana supôs que fosse de Daniel, e Ayla eram quase que opostos. O garoto tinha expressões mais afiadas, porém gentis. Seus olhos eram calmos, pacíficos. Se algum deles fosse feri-la, Daniel com certeza não o faria. Ayla, por outro lado, era… turbulenta. Liliana queria falar de seus olhos, mas não via muito além do preto de ambas, íris e esclera. Se ele tinha pele morena, a dela era cinza. As orelhas pontudas chegavam a ser fofas, para uma assassina de um grupo de elite enviado para sequestrar jovens que se perderam da família.

Um garoto baixinho com asas de borboleta colocou a mão no ombro do Nicholas, tentando acalmar o loiro caótico.

— Ei, Nicholas, vai com calma. Você tá assustando a garota —  disse com uma voz muito mais grave do que Liliana esperava.

— Eu tô sendo simpático, Kaique. — ele tirou a mão do ombro. — Quer um gole? — o alado recusou e uma pulga atrás da orelha da garota voltou a pular.

Liliana tentava entender o porquê de estarem bebendo, ou melhor, só Nicholas estar bebendo. Ela defendia arduamente que estavam fazendo um ato ilícito, mas Nicholas e um outro garoto extremamente forte e alto, mas sem um resquício de matéria cinzenta, rebatiam dizendo que podiam pois os respectivos pais haviam autorizado-os por lei. 

Um outro garoto tomou a frente. Este possuía uma máscara de gás ligada a uma mochila em suas costas por um cano e roupas frescas até que demais para o clima do momento.

— Mas… o que você tá fazendo aqui, no meio do nada? — O que, hipoteticamente, era para ser uma voz semelhante à do Darth Vader estava mais próxima de uma criança engolindo gás hélio.

— Qual é o teu nome, menina? — uma voz masculina impaciente veio do fundo, simultaneamente a do mascarado.

— Liliana. —  Já não gaguejava mais. Agentes (secretos) do governo e traficantes não conversam tanto antes de um sequestro, a menos que tenham mudado as regras desde 2018. — E eu to procurando alguma coisa pra fazer chá — sua voz ficava cada vez mais robótica e baixa. Já estava se arriscando muito ao falar seu nome.

— Você quer sorvete? — Ayla oferece um pote de sorvete de flocos quase completamente devorado.

— Isso abaixa a febre? —  Liliana perguntou, genuína e ansiosamente, para a alienígena que sussurrou algo parecido com “se você colocar na cabeça”. De qualquer forma, não deveria aceitar comida de estranhos, e disse isso da forma mais educada possível para a estrangeira, seguido de um pedido de desculpas.

— A gente pode tentar te ajudar com o que você precisa. — Daniel e mais uma garota nova, dessa vez com fios loiros como o sol e orbes que flertam entre o azul e cinza. Liliana contou a eles o que precisava; remédios para abaixar a febre e controlar tosse. 

— Você não parece febril, muito menos tossindo. — A mesma voz impaciente se pronunciou novamente, com claras intenções hostis.

Catapimbas. Precisava tanto dessas ervas, mas não queria expor Deméter, não depois dela cuidar tão bem da garota, de incentivar Lili a explorar os limites e intensidades de sua individualidade, coisa que sua mãe a privou como forma de protegê-la.

Mas ela precisava tanto.

— É para uma amiga que… a gente tá acampando e ela tá um pouco mal. —  nenhum deles pareceu acreditar no que disse, mas alguns, como Daniel e a garota loira , focaram em procurar as ervas de qualquer forma.

Nicholas foi o primeiro a agir; levantou-se e apontou a garrafa na direção da jovem assustada.

— Você tá falando sério sobre a febre, mano? —  Liliana deu mais alguns passos para trás, quase tropeçando em uma raiz, e gaguejou um “tô” que não convenceria nem um surdo.

Uma figura masculina, de cabelos pretos, olhos vermelhos e uma cicatriz de queimadura que vai da metade da bochecha até embaixo do queixo saiu de trás do grupo olhando-a como se estivesse com um discurso de militância de cinco páginas na ponta da língua.

Ele parou a alguns metros de Liliana.

— Você quer Novalgina? A gente pode arranjar pra você, mas precisamos saber o que tá acontecendo de verdade.

— Eu… eu não sei o que tá acontecendo. —  Já era tarde e eles eram sua melhor esperança —  Ela tá com muita febre, não consegue levantar e tá tossindo muito. Eu tô com medo — sua voz fraquejou.

Daniel ainda estava agachado no chão com a loira e levantou-se num gesto fluido com uma florzinha na mão.

— Toma essa aqui —  ele entregou a planta para Liliana, que pegou hesitante. — Isso vai te ajudar com o que você precisar dela, eu acho. — E deu um sorriso rápido.

— Não senti muita confiança na sua fala

Eu não senti confiança na sua fala! — Nicholas se exaltou e Daniel concordou. Por um momento, todos falaram juntos, mas algo se sobressaltou. —  Eu acho que ela trabalha pro Z. —  E o loiro continuava a beber que nem uma Captiva. E quem era Z?

— Olha, eu não faço a mínima ideia de quem seja esse Z aí, a verdade é que eu saí para viajar com a minha mãe e me desencontrei dela no meio de uma trilha. —  Eles a olhavam fixamente, como se fossem polígrafos prontos para apitar se caso mentisse. —  Aí eu fiquei um pouquinho nervosa demais e acabei me perdendo de vez. Então essa moça me encontrou e começou a cuidar de mim, só que ela não consegue mais por causa do que quer que ela tenha e agora eu cuido dela. — A pelinha ao redor da unha do polegar já estava quase na dobra do dedo de tanto que ela puxou de nervosismo.

Mesmo que conhecesse várias plantas, Liliana não se deu o trabalho de conhecer a medicinais e o que cada uma fazia. Em casa, ela tinha seus remédios e farmácias a cada duas ruas. Nunca pensou que algum dia teria que encontrar uma planta para tosse e febre no meio de uma floresta sem a ajuda de seu telefone.

O menino da cicatriz e Daniel trocaram olhares. O primeiro parecia desaprovar o que quer que o outro estivesse pensando, mas este não pareceu se importar o suficiente com a opinião alheia.

— Nós podemos te levar para a nossa estalagem, acho que a Julia trouxe um kit de primeiros socorros, — pigarreou — mas precisamos ligar pra Larissa primeiro.

Eles se reagruparam e cada um pegou uma… caneta? Apontavam-a para cima e andavam por aí, como se estivessem procurando por sinal telefônico. 

Sem o telefone.

A única que ainda não havia dito nada, uma garota alta com longos cabelos escuros, olhos céticos e roupas esportivas, se aproximou sem formalidades, de forma quase robótica.

— Garota, qual o nome dessa mulher? — Liliana congelou.

— Era um nome esquisito… — Tentou fingir-se de esquecida para ganhar tempo até que arranjasse uma mentira convincente. Ah, quer saber? Já tinha enfiado o pé na jaca, só faltava abrir os dedos. — Deméter.

— Deméter?! — O nome pareceu gatilhar algo dentro do garoto da cicatriz, que até então apanhava da tecnologia. Um alerta que se espalhou pelo resto do grupo, fazendo-os virar para olhar Liliana. 

Ah.

Ah… bosta.