“Memórias agridoces”
Se passam algumas horas e Liliana não sai do lado de Deméter em momento algum. Nem adormece. Ela estava frágil demais e temia que algo acontecesse enquanto dormia, então a observava. Prestava atenção em sua respiração caso se alterasse. Quando ficava com fome, criava alguma fruta, mas não saía do lado dela.
Alguém bate na porta duas vezes e essa se abre, revelando Nicholas.
— Como ela tá?
— Dormindo ainda. A luz de Alex a estabilizou, diga a ela que estou em dívida eterna com ela.
— Ela é assim mesmo, o nosso SUS ambulante — ele ri sem graça. — Como você tá?
— É muita informação para um dia só. Ontem eu tava aprendendo as enzimas das plantas carnívoras e hoje eu quase fui assassinada, fui sequestrada pelo Bata… Sakata, descobri que ela é uma deusa e talvez eu seja sua descendente. Acho que qualquer um estaria entorpecido, nem que fosse um pouquinho.
Ele tira o uísque da mochila e oferece a ela, que recusa com toda a sua força.
— Pensa direito sobre isso, — ele disse com seriedade, referindo-se à oferta — isso vai mudar a sua vida, então pensa certinho o que você vai fazer com ela. MAS, se você precisar de alguma bebida, eu tô aqui. — Ele diz a última frase com um ânimo que ela não tinha há horas.
— Não vou querer nenhum tipo de bebida — respondeu de forma direta, não grossa. Sua atenção saiu do loiro e voltou-se para seus dedos. Deles surgiam margaridas, que ela cortava e trançava numa coroa. — Eu reprimi minha habilidade por tanto tempo que é estranho agora alguém pedir para que usá-la… divinamente? Eu não sei, não estou entendendo muito bem o que está acontecendo. — Assim que ficou pronta, colocou-a sobre a cabeça da enferma.
— Qual é a sua habilidade? — uma voz mais fina veio da direção da porta. Ayla.
— Ah, — como explicar? — eu faço isso — ela mostrou as palmas das mãos e subitamente uma flor de lótus surge, cobrindo toda a área. — Esse é o máximo que consigo fazer agora, ela tava me ensinando a como ultrapassar alguns limites meus, mas não tivemos tempo o suficiente.
—Você consegue todas as flores?
— Só as que eu comi. — Ayla e Nicholas trocaram olhares preocupados, mas não perguntaram mais sobre esse assunto. — Um dos limites era criar algo sem ter comido, só sabendo de alguns componentes químicos. É, eu tenho muitos limites, minha mãe só deixava eu criar flores para ajudar na floricultura dela e legumes e verduras pra economizar no mercado.
— Se você vier para a escola, você pode aprender mais rápido — Ayla respondeu animada.
—Se eu for para a escola, eu não tenho casa para voltar depois — Liliana rebateu, imitando sarcasticamente o ânimo da alienígena. — Vocês estão pedindo para eu abandonar minha família, minha vida.
— Mas quantas vidas você poderia salvar se fosse para essa escola? — Larissa, a professora, estava parada no batente. — Aliás , como você foi recomendada por uma deusa, acredito que tenha uma bolsa integral. Liliana, nós vamos convencer sua mãe se você quiser ir para a escola. A decisão de ir ou não é completamente sua agora.
Ela pensou por uns segundos. Quantas vidas salvaria se fosse? Poderia treinar suas habilidades e finalmente seguir um destino que ela mesma escolheu, mesmo que essa decisão a matasse algum dia. Ela morreria como a Liliana que queria ser.
Se o último pedido de Deméter fosse para ela herdar uma coisa que a faria ser quem sempre sonhou, por que estava tão contrária à ideia?
— Eu quero ir. Eu quero a pílula vermelha.
Nota da Autora: Liliana nunca soube disso, mas Deméter sorriu quando a ouvir dizer isso.
—
— Liliana? — uma voz a puxou de onde quer que tivesse se afundado por sabe-se-lá-quanto-tempo — Você quer falar alguma coisa?
Piscou algumas vezes até se relocalizar no espaço-tempo presente. Não estava em julho, no calor do interior da superfície de São Paulo, mas no frio do subsolo árido, um dia depois do natal. Deméter estava morta já fazia um tempo e muita coisa aconteceu nesse meio tempo.
Foram para a Rússia,
Itália.
Algo laceia seu coração e aperta quase a ponto de parti-lo ao meio.
Lembrou-se do Coliseu, quando enfrentavam um membro do Culto, Ed. Uma formação de estudantes que nunca ouviu falar antes se juntou a eles e de bate-pronto já soube que eram um esquadrão de elite quando praticamente haviam dominado o confronto.
Haviam vencido, mas a que custo? A vida de Daniel e aquele garoto dos Rapazes foi um preço justo? Se soubessem que isso aconteceria, ainda o teriam feito?
Daniel nem hesitaria. Ele era o que diziam o que um super-herói era. Tudo pelo bem maior, pelo bem dos amigos e dos civis.
O corpo dele estava frio há alguns meses, também. E a alguns metros à esquerda de onde Liliana estava.
O mundo acabou no dia 26 de dezembro de 2057.
Estavam ali para prestigiar aqueles cujos corações pararam de bater neste fatídico dia.
Aproximou-se das sepulturas com nomes de pessoas que até ontem riam e dançavam com ela.
JULIA ZUCKERBERG
LUCQUES SABLIER
KAIQUE BOURBON DE ORLEANS…
SAKATA SETT
O sangue dele já estava seco no rosto e dedos do Aspecto.
Os dias em que suas maiores preocupações eram passar no vestibular e achar um namorado se tornaram doces e distantes memórias. Outras, como o dia em que conheceu a Formação Alpha, são agridoces — foi extremamente feliz naquele tempo e quando lembra dele, mas eles só trouxeram mortes, violência e dor para sua vida.
O apocalipse literalmente aconteceu hoje de manhã. Nicholas, Sarah e Alex estavam desaparecidos, provavelmente mortos.
O agridoce teria que ser doce, agora.
Liliana passou pela sepultura de cada um deles, passando a mão pela borda como se fosse sua forma silenciosa de se despedir. Não era tão próxima deles como seus amigos eram, mas chorou por eles. No último, seus dedos demoraram um pouco mais.
— Os últimos heróis morreram com eles. — Disse e ajoelhou-se em frente ao nome enquanto sussurrava a última parte — Se é que algum dia nós fomos heróis.
Tentou enfiar os dedos sobre a terra, mas eles mal fizeram estrago na grama sintética. Então, logo à frente da data de nascimento de Sakata Sett, Liliana colocou uma batata e nunca mais voltou àquele lugar.