É muito difícil para um filme de guerra ser completamente anti-guerra. Por mais que haja perda de personagens queridos durante os combates e que algumas atrocidades sejam mostradas, há também certa “excitação glamourizada e glorificada”, acompanhante da tensão, explosões e ação presente nesses trabalhos. No final dos créditos, os mortos ficam no filme, os sobreviventes são os espectadores e a vida fora dele segue normalmente; estou me referindo à filmes como The Thin Red Line (Terrence Malick, 1998), Full Metal Jacket (Stanley Kubrick, 1987) e Apocalypse Now! (Francis Ford Coppola, 1979). Por mais que estas três obras sejam devidamente cultuadas, não tenham heróis definidos e mostrem as diversas camadas psicológicas colaterais deixadas pela guerra, é importante falar do verdadeiro melhor filme do gênero: a pérola soviética quase perdida, Come and See (ou Vá e Veja, em português). Dirigido por Elem Klimov e lançado em 1985, o longa faz os outros citados parecerem até leves demais: lembra que durante a guerra, os sobreviventes são os reais azarados. Klimov faz com que não esqueçamos isso durante o filme.

O longa conta a história de Florya, um jovem de aproximadamente 14 anos que reside com sua família um vilarejo na Bielorrússia durante a Segunda Guerra Mundial. O garoto deseja por tudo servir o exército russo e contra a vontade da mãe e irmãs, se voluntaria e é enviado junto ao batalhão. Quando se perde dele e é obrigado a voltar à seu vilarejo, começa a presenciar todos os horrores que uma guerra é capaz de gerar. Durante suas duas horas e vinte, é na morte da inocência, nos eventos traumáticos que Florya presenciará que o filme se apoia ao contar sua história: a majestosa direção de Klimov nos insere e torna toda a experiência extremamente imersiva, os longos takes, o realismo dos efeitos e da violência tornam todo o sofrimento do filme extremamente realístico, apoiada pela noção de textura dos seus ambientes e personagens. Os planos-sequência apresentados pelo filme são exemplares, aproveitam a iluminação natural e os demais elementos em cena como poucos fazem, de modo à intensificar ainda mais a noção de imersão por meio da destruição rítmica e progressiva.

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Os detalhes do filme também impressionam, desde sua ornamental trilha sonora, à preocupação de retratação histórica, linguística e cenográfica. A mixagem de som, assim como a própria câmera, muitas vezes acompanha o testemunho de Florya aos acontecimentos, utilizando o auditivo em prol da narrativa e do crescimento do terror psicológico, este que é outro ponto a se destacar. Klimov sabe como ninguém o que mostrar, a violência em Vá e Veja é impactante mas não gratuita. Muito das atrocidades que acontecem são apenas sugeridas e não explicitadas, como o sangue que escorre das pernas de uma garota que cruzará o caminho de Florya ou os gritos que vêm das casas em chamas. A dicotomia entre o surrealismo e o hiper realismo torna o filme único, ao mesmo tempo que ele se utiliza de belas alegorias (como a cena final e da alemã comendo lagosta durante o massacre), é grande o esmero do diretor em tornar as situações o mais real possível, como nos idiomas falados e na recriação dos antigos vilarejos da Bielorrússia.

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O cerne da pura maldade

O nome do filme faz referência à passagem bíblica presente no Livro das Revelações, na qual João olha os rastros deixados pelos Quatro Cavaleiros do Apocalipse:

“Quando abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto ser vivente dizer: Vá e veja!
E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava montado nele chamava-se Morte; e o inferno seguia com ele; e foi-lhe dada autoridade sobre a quarta parte da terra, para matar com a espada, e com a fome, e com a peste, e com as feras da terra.”

Muitos filmes retratam o holocausto ao se referirem ao nazismo, mas a crueldade do regime fora muito além da violência com os judeus. Depois de todo o sufoco em Vá e Veja, Klimov ainda multiplica a angústia por 628 (número de vilarejos da Bielorrússia que sofreram o mesmo destino), nos lembrando que todo o sofrimento assistido é apenas uma mínima parcela do que foi a maior manifestação de ódio já presenciada pela humanidade. O testemunho de Florya sobre o massacre evidencia como o nazismo é a representação pura da crueldade: nada justifica o que foi feito e menos ainda a existência de pessoas que ainda seguem tais atrocidades.

O filme pode ser colocado num patamar alto no que tange sua importância histórica. Deveria ser de conhecimento popular que defender (e por defender, digo discursar para, omitir, se silenciar diante de, tentar justificar, compactuar com, falar que é de esquerda, etc.) o nazismo é cometer um crime hediondo contra a humanidade. É repugnante discursar em prol de algo que carrega todo esse significado genocida, algo que não pertence mais à esfera da insensibilidade, mas comporta uma bagagem desumana e de pura crueldade. Qualquer coisa que compactue com tal discurso tirânico deve ser repreendido. Não por medo do retorno de Hitler ou do regime, mas enquanto continuarmos ignorando o passado, nunca seremos capazes de encontrar uma luz no futuro.

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A este ponto, a importância histórica, social e técnica do filme já está evidente. Klimov nunca mais filmou outro longa e o motivo para tal está na completude de Vá e Veja, um retrato definitivo e a representação perfeita de como regimes totalitários e seus seguidores carregam significados retrógrados, que antagonizam completamente com o verdadeiro progresso do bem-estar da humanidade.

Crítico mirim, desenhista amador, escritor júnior e futuro diretor (se tudo der certo).