Retorno à poesia de Manoel de Barros para, novamente, falar sobre o silêncio:
“Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta. Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa,
Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão.”
O silêncio agora habita as esculturas do artista australiano Ron Mueck em exposição da Pinacoteca de São Paulo até 22 de fevereiro de 2015. As obras causam impacto pelo detalhe meticuloso na representação de figuras humanas, realizadas com surpreendente mudança de escala que acabam por distanciar suas criações do realismo acadêmico e, até mesmo, do hiper-realismo.
São objetos escultóricos que iluminam verdades universais ao retratarem figuras comuns um silêncio que comunica, pois irradiam uma espiritualidade no corpo, na pele, nos pelos, no olhar, nos gestos. Mueck joga com o silêncio e o não-dito denunciando e desconstruindo falsos valores da cultura contemporânea: o feio e o bonito, o velho e o novo, a vida e a morte.
Observando suas criações percebemos que o silêncio pode adquirir a força do verbo e gerar um convite à reflexão, pois possuem a capacidade de revelar um estado de alma que pede a cumplicidade do espectador.
Basta observarmos atentamente a obra “Jovem Casal” (2013) que retrata um jovem em pé ao lado de sua parceira que parece estar confidenciando-lhe algo. A suposta intimidade do casal coloca o espectador como um voyeur que irá construir a narrativa afetiva sugerida pela obra. Porém, outra narrativa se constrói quando damos a volta por trás da escultura e descobrimos que o jovem mantém sua parceira agarrada pelo pulso. Qual a verdadeira história deste casal? Uma narrativa do afeto? Uma narrativa do ciúme? Cada espectador criará a sua história.
O mesmo acontece com “Mulher com as Compras” (2013), com atenção especial às feições dos rostos do bebê e de sua mãe: a criança está como que presa ao corpo da mãe dentro do sobretudo cujos botões se esticam pela pressão do menino. O peso das sacolas é sentido pelo corpo e pelas feições da mãe. Nova narrativa silenciosa se constrói na mente do espectador.
A obra que chama mais atenção, talvez pelas suas dimensões e por ocupar o lugar central da exposição, é “Casal debaixo do guarda-sol” (2013), mas a criação que me tocou foi “Homem em um barco” (2002): um homem sentado de braços cruzados na proa de um grande bote de madeira. Está nu e parece estar inclinado pra um lado, com o seu olhar fixo em algo que está fora de cena. Meu juízo perceptivo imediatamente associou esta imagem a Barca de Caronte (personagem da mitologia grega: o barqueiro que carrega as almas dos recém-mortos sobre as águas do rio Estige e Aqueronte, que dividiam o mundo dos vivos do mundo dos mortos.)
Outra associação analógica do “Homem em um barco” me remete ao conto “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa, que no próprio título do texto atribui uma característica estranha à compreensão do elemento natural “Rio”: atribui-lhe uma terceira margem que não existe. Sabemos que um rio é constituído de duas margens que se remetem. Entre elas corre o rio (imagem da continuidade, da fluidez). No conto a canoa é ocupada por um personagem sem nome – o pai. Tempo pouco significa para o rio, para a canoa e seu ocupante o tempo é fundamental. A terceira margem, ninguém sabe como é, ela fica além do mistério da morte, que também nos é desconhecida.
Ron Mueck como Guimarães Rosa, abandona a criação-narração prosaica e oferta a seu espectador uma criação-narração poética:
“Se o dizer do que nos é possível é o dizer prosaico, o dizer do que é provável é o dizer poético… E se o provável é a preexistência – o provável é ainda silêncio. A poesia é, assim, o silêncio que se diz em palavras.” (Melo e Castro).
João Carlos Gonçalves (Joca)
Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.
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