Ah, a esperança!

Se você leu esse texto do meu querido amigo e brilhante colega FelipeRAG, você, como eu, ficou com o coração aquecido pela ideia da persistência trazer resultados, dos sonhos serem possíveis, de você conseguir se sentir você ao alcançar o que se propôs a alcançar, queda após queda. Se você não leu, bom, leia.

A esperança é linda. Pelo tom do título você pode achar que eu estou sendo irônica, mas eu acredito nisso, mesmo. A esperança é linda e importante, essencial para a sobrevivência do ser humano como espécie e do indivíduo como self. Mas esse raciocínio vocês já viram no texto indicado. O que trago hoje é que a esperança também pode ser linda, sim, mas linda como foi Narciso e nos prender às margens de um rio cuja única saída é o fundo.

Abrir mão da esperança pode trazer resultados extremamente positivos na vida de uma pessoa, na verdade. Estamos acostumados, quase programados, a nos apegarmos a alguns conceitos como sucesso e felicidade e direcionarmos nossos esforços a encontrá-los sem saber o que eles realmente significam. A ideia de que podemos ser bem sucedidos e felizes, de forma plena, constante e concreta, é popular porque ela é lucrativa. Porque ela nos faz trabalhar o suficiente.

Abrir mão da esperança pode significar desapegar de uma necessidade imposta em nome do que nem sabíamos que queríamos. Tirar seus desejos conscientes da frente para buscar seus desejos inconscientes. Mesmo na vida pessoal, tirando dinheiro da equação, aplicamos a esperança como um meio para atingirmos nossos objetivos porque assim fomos ensinados. “Se eu quiser o suficiente, se eu tentar o suficiente, vai dar certo”. A esperança não pode ser um meio. A esperança está no seu melhor estado quando ela nos acompanha como um tempero, não como prato principal.

Para ilustrar melhor o poder de alívio da desesperança, trago o quinto episódio da série The Midnight Gospel, intitulado Annihilation of Joy. Você pode encontrar uma contextualização mais extensa da série neste outro texto meu, mas o resumo é: o diálogo da série foi retirado diretamente de um podcast real do humorista Duncan Trussell, que conversa com seus convidados sobre as mais diversas questões. No episódio que dá vida a Annihilation of Joy, o convidado é Jason Louv, um professor de meditação, pesquisador e escritor, que dedica suas obras à análise do que significa existir e como fazê-lo da melhor maneira possível.

A cada episódio, o áudio é acompanhado por uma situação que ilustra a conversa, ainda que, muitas vezes, de forma muito subjetiva. Em Annihilation of Joy, temos a animação mais próxima do áudio de toda a série: as conexões entre o que é dito e o que é mostrado são explícitas, ainda que complexas, e de uma beleza indescritível. O episódio é uma bela viagem, mas espero que dê pra acompanhar.

Nesse episódio, o personagem principal, Clancy, visita uma cadeia de almas e quebra inúmeras celas até pousar naquela do prisioneiro que acompanharemos. O prisioneiro arrancou a própria língua, mas tem um pássaro ligado ao seu pescoço que fala por ele, embora tenha consciência própria. Assim, o visual do episódio acompanha o prisioneiro tentando escapar, enquanto o áudio é a entrevista com o pássaro (Jason Louv).

O prisioneiro, ao ver a cratera deixada por Clancy no topo de sua cela, tem a ideia de escalar por ela para fugir. No entanto, nessa prisão, toda vez que o corpo morre, a pessoa passa pelo processo de renascer. E assim, a cada vez que o prisioneiro falha em sua fuga, o espectador é levado junto com ele para uma espécie de purgatório, até ver o personagem renascer de volta à estaca zero.

O prisioneiro aprende com os seus erros. Quando ele renasce, ele sempre é capaz de passar pelo momento no qual morreu pela última vez. Mas ele sempre morre na próxima etapa. Ele aprende, se adapta, evolui e persiste. Mesmo assim, todo novo desafio em seu caminho o leva à morte. Ele não está fazendo nada de errado. Mas nada dá certo. Ele tenta usar violência, a união, a distração e é capaz de corrigir cada erro da sua última vez, mas nunca de prever o próximo erro da sequência infinita de passos até a liberdade que ele busca.

As visitas ao purgatório são como pequenos julgamentos finais. O coração do prisioneiro é retirado e pesado em uma balança com uma pena no outro lado – ritual da mitologia egípcia. Se o coração pesar mais do que a pena, o prisioneiro volta pro começo. Seu coração é cheio de espinhos, dentes, é ferido e fere de volta. O coração sempre pesa.

O coração só se cura quando, no final do episódio, o prisioneiro desiste. Ele morre uma última vez. A diferença é que, nessa vez, ele não avançou nenhum passo sequer em relação à última tentativa. Morre no mesmo local, da mesma maneira. E dessa forma, as justificativas para tentar de novo se esvaziam. Antes de morrer, ele fecha os olhos, chora, e desiste.

Desistir é uma enorme coragem. A única coisa que isso garante ao prisioneiro é que ele não vai morrer ali mais uma vez, mas, até onde ele sabe, isso pode significar para sempre estar no começo. Mas foi a desistência dele que conseguiu fazê-lo aceitar onde ele estava. Seu coração, assim, se cura o suficiente para ele ganhar uma ferramenta que ele não tinha antes: o coração se transforma em uma máquina do tempo.

O prisioneiro analisa seu novo coração: funcional, diferente do outro. Ele consegue ver o momento em que Clancy aparece quebrando a cela. Assim, ele o escala e volta no tempo, para ser carregado por aquele cometa para outro lugar.

Se ele não tivesse desistido, ele jamais teria conseguido justamente a ferramenta necessária para conseguir escapar. Sem o alívio, o peso fora das costas de precisar conseguir da maneira que vinha tentando, ele não teria conseguido enxergar nem criar outra maneira tão mais simples e efetiva para o próprio objetivo que ele estava se torturando para conseguir.

Insista, sim. Tenha esperança. Mas seja justo e sincero com você mesmo. Desista quando for preciso, quando for justificável, antes que seja inevitável e traga amargura ao invés de alívio. Quem sabe essa exata desistência em um caminho específico não te abra os olhos para algo melhor.

Às vezes, quando tudo parece um caos, fazemos a pergunta errada. Queremos saber o que foi que nós fizemos de errado, para podermos corrigir. Essa falha é extremamente humana. Às vezes, você não fez nada errado, como o prisioneiro. Às vezes, as coisas dão errado porque não têm como dar certo. Essa impotência é tenebrosa, mas Jason Louv fala melhor do que eu: “No momento em que você aceita as coisas como elas são, você não precisa mais da esperança. Porque você percebe que onde você está é até que ok”. Honestamente, a possibilidade de estar “até que ok” é deliciosa comparada à pressão de estar sempre ótimo.

Como você está usando a sua esperança? Pare, respire, pense naquela situação. Você está se escondendo atrás da sua esperança para não admitir que fez uma escolha errada? Ou, talvez, se prendendo a um cenário que já não é real há muito tempo? Você está depositando todas as suas esperanças em um fim, sem coragem de pensar no meio para alcançá-lo? 

Outra frase do episódio para refletir, dessa vez de Duncan Trussell: “A desesperança soa muito podre se você ainda não realmente explorou o quanto você tem usado a esperança como uma falha”.

Vamos voltar à analogia do tempero. A esperança é o bom e velho sal. Honestamente, cai bem em tudo. Do doce ao salgado, a dose certa de sal no prato certo é um toque final indispensável. Mas, de cenário em cenário do último parágrafo, não há pitada de sal que salve um prato queimado. Ou você pode estar jogando sal em um prato que estava bom há seis colheres de sopa atrás. Ou ainda, comendo sal puro, desesperadamente, em busca do gosto do que você realmente quer sentir. Às vezes, é melhor jogar seu prato fora e começar de novo para ficar satisfeito.

Última frase do episódio, dessa vez no original inglês para maior impacto: “Just beating yourself up with hope. Not one fucking second you let yourself be hopeless. Let go of hope.” 

“Você se tortura com esperança. Nem por um único segundo se permite se sentir desesperançoso. Abra mão da esperança.” Experimente o elegante alívio de desistir.

Let go.