The Midnight Gospel é uma série original Netflix com 8 episódios lançada em 2020. A criação do humorista Duncan Trussell em conjunto com Pendleton Ward (criador de Hora de Aventura) destaca-se de qualquer outra série já produzida por seu formato inovador: os diálogos são retirados diretamente do podcast The Duncan Trussell Family Hour (TDTFH), feito por Duncan desde 2012, o que garante naturalidade, dinamismo e profundidade verdadeiras.

No podcast, Duncan entrevista pessoas extremamente interessantes com conhecimentos vastos sobre magia, espiritualidade, meditação, etc. Os convidados discutem temas complexos, mas o tom cômico de Duncan garante ao podcast uma simplicidade de conversa de bar, que permite que o ouvinte absorva a teoria que está sendo discutida com maior facilidade.

Dos mais de 450 episódios de cerca de uma hora, 8 foram selecionados para serem recortados em diálogos de aproximadamente 15 minutos. E como se isso já não fosse interessante o suficiente, a animação psicodélica da série complementa o áudio perfeitamente, de maneira aparentemente desconexa mas indissociável, na verdade.

Clancy (Duncan Trussell), o personagem principal

Por vezes, assistindo, você percebe que está tão encantado com a animação e suas cores belíssimas que não está ouvindo o diálogo há uns cinco minutos. Por outras, está tão investido na filosofia que percebe que não viu o que aconteceu nas últimas três cenas. E existem os momentos mágicos nos quais você percebe que há uma conexão implícita e fortíssima entre áudio e vídeo, e que o episódio é uma grande metáfora para o diálogo. Mas ao contrário do que as analogias costumam fazer, simplificando o que está sendo passado, a animação torna complexo o tom suave das conversas, gerando uma experiência verdadeiramente única ao espectador.

A complementação da animação ao áudio garante uma nova maneira de se conectar com o que está sendo dito. Ouvir os episódios de TDTFH é algo bonito, mas os conhecimentos apresentados são teóricos. A animação tem a capacidade mágica de transpor a teoria para a prática. É muito mais fácil identificar os efeitos da conversa na sua vida pessoal quando você está assistindo um exemplo de como essa teoria pode ser vista no mundo real – seja lá o que o mundo real é. Ou seja, a experiência do diálogo é leve e relativamente objetiva, e a adição do visual aprofunda a subjetividade das conversas, aproximando o espectador a Clancy e permitindo uma outra interpretação: do teórico para a vida de Clancy, da vida de Clancy para a sua. E é com essa técnica de conexão que The Midnight Gospel foi capaz de criar o que eu considero o episódio mais tocante da televisão.

Clancy (Duncan Trussell) e Morte (Caitlin Doughty)

Mas antes de chegar a isso, qual é a sinopse dessa série, afinal? O formato é tão genial que a história fica em segundo lugar, mesmo. Acompanhamos Clancy, esse homem rosa, que tem um simulador de universos. A cada episódio, ele viaja para um mundo que está morrendo e entrevista um morador desse planeta. No momento da entrevista, entra o diálogo do podcast.

Cada episódio gira em torno de uma discussão central. Drogas, magia, perdão, esperança, meditação e morte. Morte aparece como o centro de três episódios distintos, sendo vista por perspectivas diferentes, e é o tema condutor da série. Os entrevistados são incrivelmente interessantes e bem representados: um exemplo que eu gosto muito é Damien Echols, um homem que passou 18 anos preso por um crime que não cometeu. No episódio, ele é representado por um peixe dentro de um aquário com um corpo mecânico, simbolizando a resistência espiritual que ele construiu para si mesmo na prisão para proteger seu corpo físico.

Clancy (Duncan Trussell) e Fish Bowl Man (Damien Echols)

A ordem dos episódios, conduzida pela ideia da morte, é um caminho impecável para o destino final, o episódio Mouse of Silver. A última entrevistada é a mãe de Clancy, ou melhor, a mãe do criador Duncan Trussell na vida real. O podcast que ganha vida no episódio foi gravado três semanas antes do seu falecimento após anos batalhando contra um câncer, em 2013. Desde então, Duncan nunca havia retornado ao áudio, até a chance de levar a genialidade e sutileza das falas de sua mãe ao mundo com essa homenagem.

Clancy (Duncan Trussell) e Deneen Fendig (como ela mesma)

É impossível não se emocionar com esse episódio. Pessoalmente, eu chorei como um bebê nas duas vezes que vi – e tive que esperar uns meses pra tomar a coragem de assistir de novo. Honestamente, estou ficando emocionada só de tentar escrever sobre. É a representação mais bonita de amor que eu já vi na vida. Pude sentir o amor entre os dois mesmo 8 anos depois daquelas palavras serem ditas, e a representação visual dos diálogos é brilhante. Tem as metáforas mais fortes de toda a série, algumas frases que eu me imagino tatuando e uma cena que eu não consigo pensar sobre sem o olho encher de lágrimas.

O formato absolutamente único somado à história pessoal de Duncan por trás desse episódio fazem Mouse of Silver o episódio mais tocante da televisão, simplesmente porque não existe nada disponível que seja capaz de chegar no nível de realidade e conexão com o que está sendo visto e ouvido. Essa é uma série para ver, rever, rever e ver de novo, e a cada vez você vai entender algo novo. Isso, é claro, contando com as pausas pra recuperar o fôlego e reunir coragem pra clicar o play novamente na obra prima emocional que é Mouse of Silver.