A série BoJack Horseman, original Netflix, começa com uma premissa que soa relativamente boba, e uma estilização que acompanha a expectativa de uma série adulta de animação, cômica e cínica. BoJack é um ator com cerca de 50 anos, deprimido e alcoólatra, que ainda vive com a fortuna que fez quando, nos anos 90, era estrela de um show de muito sucesso. Tentando reconquistar relevância, BoJack contrata uma mulher para escrever sua biografia, e assim inicia a primeira temporada. Aqui cabe um famoso “até aí, tudo bem”.
A primeira temporada segue o esperado. Existe alguma exploração de quem é BoJack Horseman, mas nada nesses primeiros episódios conseguem preparar o espectador para a verdadeira montanha russa que as cinco temporadas seguintes traçam. Uma montanha russa que às vezes parece só descer, cujas quedas reviram o estômago, e você fecha os olhos achando que vai atingir o chão mas, quando abre, o fundo do poço conseguiu chegar um pouquinho mais embaixo. Divertido, não?
Não parece, mas essa é uma das séries que mais me reconforta. Nesse texto, vou tentar dar o mínimo de spoilers possível para explicar o porquê, mas é realmente intrínseco ao jeito que tudo acontece, então você simplesmente vai ter que ver. A constelação de esperança no meio de um céu de desesperança faz dessa série, talvez, a minha favorita, e eu imploro a você: dá uma chance. Mas passa da primeira temporada pra ser uma chance bem dada.
(Importante dizer: a série é repleta de gatilhos. Dependendo da sua sensibilidade a alguns temas, especialmente álcool e drogas, é essencial pesquisar antes de assistir. Esse link pode ajudar https://www.imdb.com/title/tt3398228/parentalguide )
Bom, e quem é BoJack Horseman, afinal? A vítima ou o vilão, o narcisista ou o inseguro? Acompanhamos esse cavalo a partir de uma característica essencial: seu ódio por si mesmo. Assim, ele é todas as opções anteriores, protagonista e antagonista da sua própria história. Nutre um ódio profundo contra si, o que envenena todas as suas relações e sabota todas as suas oportunidades pessoais e profissionais.
BoJack não vê diferença entre fingir que nunca machucou ninguém e se perdoar para que possa evoluir, então é constantemente assombrado pelas figuras do seu presente e passado que sofrem e sofreram por suas ações tóxicas. Não se permite ser melhor do que um dia foi, sabotando toda a sua vida para comprovar para si mesmo e para os outros de que ele não é merecedor de nada além de ódio. Não se vê digno de perdão e de melhora.
Como ele é tão cruel consigo mesmo, o que faz com que ele se sinta bem é a aprovação alheia. Aqui entra o narcisismo. Acostumado com a fama, a aprovação alheia foi abundante durante os anos em que ele estava no auge da sua inocência e da sua carreira. No entanto, conforme foi amadurecendo, viu escorregar de suas mãos tudo aquilo que o público via digno de reconhecimento, e desesperadamente tenta consegui-lo de volta. BoJack se importa profundamente com a imagem que os outros têm dele, mas com alguma distância. Isso porque, quando chegam muito perto, ele tem medo de que as pessoas enxerguem o que ele vê: um fracassado que não merece um pingo de positividade na sua imagem. Assim, o público conhecê-lo por sua atuação, não por sua pessoa, seria a dose perfeita de aprovação.
Seu ciclo mais próximo sofre com isso. BoJack precisa que eles reforcem que ele é uma boa pessoa, que ele tem tempo de se tornar uma boa pessoa, pois se seus amigos não disserem isso a ele, não tem quem diga. Mas, temendo que a resposta deles seja desesperançosa, BoJack os afasta antes de que eles tenham tempo de dizer que ele não tem salvação – a única resposta coerente na sua cabeça.
Mas a verdade é que BoJack não sonha em ser reconhecido por todos como uma boa pessoa. Seu sonho é poder olhar para dentro e gostar do que vê. Ter orgulho. Ele quer ter uma boa imagem de si, mas nunca soube como ter uma imagem própria a não ser pelo reflexo do reflexo dele para os outros. Uma xérox de uma xérox, como diz um episódio da última temporada. Inevitavelmente despido de qualquer personalidade real, a imagem final é quem ele realmente odeia.
Sobre os motivos para BoJack chegar nesse estado deplorável, eu não posso me estender. O backstory dele é revelado aos poucos, de modo absolutamente impecável, e você conhece apenas o suficiente dele para entender o que está acontecendo no momento. Afinal, BoJack não deixa ninguém na sua vida chegar perto dos seus traumas, então o que faria de você, espectador, diferente? Você precisa mergulhar na mente dele para ganhar esse direito. E você mergulha. E dói.
Esse mergulho é feito de maneira perfeita. O uso da animação é o estilo perfeito, o equilíbrio entre piadas toscas e momentos dramáticos é perfeito. A depressão de BoJack não é tratada como frescura nem como seu único traço de personalidade. Não é vista como uma desculpa para as ações terríveis que ele toma nem como um impedimento de que ele seja bom e feliz. O retrato da (falta de) saúde mental é perfeito. A relação de BoJack com cada personagem é perfeita. Eu não consigo pensar em outra palavra para essa série que não “perfeita”. Talvez “única”, mas acho que não seria perfeita se o modo como ela trata sua história não fosse tão diferente de tudo que já vi.
O mergulho é tão perfeito que você se vê na pele de BoJack de maneira aflitiva. Você começa a perceber os momentos exatos em que ele decide fazer algo que você sabe que é errado, e assiste ele estragar a própria vida diversas vezes. BoJack tem ações que, se você me visse narrando objetivamente, você diria imediatamente “ah, ok, ele é uma pessoa horrível”. Mas o distanciamento com o espectador é tão mínimo que você se pega, irracionalmente, com dor no peito por BoJack. Raiva e dó somadas a uma conexão inexplicável em que você, sem justificativas, simplesmente o entende.
Bom, tendo em vista tudo isso, cadê a tal esperança que eu falei antes? Ela está depois. Ela está na hora que você acaba e, depois de enxugar as lágrimas e parar de soluçar – ok, talvez você não chegue nesse ponto, mas eu cheguei -, pensa em todos os momentos em que você foi desnecessariamente cruel consigo mesmo. E o que você perdeu com isso, ou pode estar perdendo agora. E o quão mais simples seria ser gentil.
Muito da esperança em BoJack Horseman, também, está nos outros personagens – Todd, Princess Carolyn, Diane e Mr Peanutbutter, principalmente, os personagens que acompanham BoJack desde o começo de sua história, e que oferecem apoio e banhos de realidade para o protagonista. Eles são individualmente desenvolvidos de maneira – volto a me repetir – perfeita, e eu poderia tranquilamente fazer um texto inteiro sobre cada um. Mas a esperança generalizada neles está em como é possível lidar com as situações mais terríveis à sua maneira, e como é possível que as coisas se acertem sem uma fórmula. Você pode ser a sua própria pessoa, lidar com as coisas de um jeito que ninguém mais entende, tudo pode sair do seu controle e, ainda assim, pode dar certo. Não perfeitamente, não como você esperava, mas você pode ficar bem. Você pode se afastar de algumas pessoas que você ama quando for melhor e estender a mão de novo quando for melhor ainda. E mais importante: você pode errar. Se até BoJack Horseman merece perdão, você também tem tempo de entrar no caminho certo.
Você precisa fazer login para comentar.