Quase todas as histórias de super heróis focam em uma coisa: a sucessão de eventos que leva a sua conclusão. No meio do caminho podem haver guerras, dissidências, amores perdidos e até mortes. Mas a história contada geralmente segue o mesmo estilo em que as coisas vão acontecendo sem termos informações sobre sua repercussão para o resto do mundo ou mesmo para a própria estrutura psicológica do herói.

Não é para menos: pela publicação mensal em grande escala e um público alvo predominantemente jovem, a complexidade psicológica ou a distância dos “grandes eventos” não é algo muito chamativo. Consome-se HQs pelas explosões e mortes. Tipo filmes de ação, sabe?

Mas esse excesso de violência teve seu preço no final dos anos 80 e começo dos 90: a chamada Era de Ferro das HQs, em que personagens eram menos heróis gloriosos e mais psicopatas assassinos ou socialmente desajustados.

Essa tendência começou com obras seminais como Batman – O Cavaleiro das Trevas e mesmo Watchmen (que já era uma crítica justamente a essa direção em que o mercado começava a se dirigir), e teve seu ápice nas histórias do Justiceiro e produções da Image Comics (lembra das bizarrices bombadas do Rob Liefeld?).

Em um cenário saturado por essas produções, o genial Alex Ross se juntou ao roteirista Kurt Busiek para criar uma série que era totalmente diferente: Marvels. A proposta era afastar o ponto de vista dos supers em combate e focar nas sempre esquecidas pessoas normais que também povoam esses mundos ficcionais fantásticos.

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As Guerras Secretas, a chegada do Surfista Prateado e muitos outros eventos são mostrados tal qual chegaram ao grande público. O divertido foi atestar o que realmente ocorre em eventos noticiados do mundo real: a percepção do público tem pouco ou nada a ver com o acontecimento de fato.

A ideia deu bastante certo: o papel antes insignificante do mundo e das pessoas que o habitam dentro das HQs de super heróis passou a ser importante. Tão importante que o trabalho posterior da dupla foi exatamente uma exploração disso: o mundo e as pessoas em um mundo igual o nosso, só que com supers, magia, alienígenas e todo tipo de evento fantástico.

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Astro City, é uma série com produção bastante fragmentada: foi publicada de 1995 até 1998 pela Image Comics, depois foi publicada pela Wildstorm de 2003 até 2010, sendo revivida pela Vertigo (da DC Comics) durante 2013 e 2014.

O microcosmo da cidade de Astro City é dissecado ao longo das edições, com múltiplos personagens narradores, uma multiplicidade incrível de núcleos de história, infinitos pontos de contato entre eventos e personagens fantásticos e humanos comuns, bem como uma abordagem bastante inusitada aos eventos cósmicos e batalhas interdimensionais, sendo apresentadas como parte da rotina e do dia a dia.

Muitos de seus personagens são arquetípicos: temos o Samaritano, inspirado no todo-poderoso Super Homem, só que consciente de seu papel e da escassez de tempo para que todas as pessoas do mundo possam ser salvas. Há também Vitória Alada, inspirada na Mulher Maravilha, mas feminista, detentora de uma rede de acampamentos/abrigos que visam o empoderamento de mulheres por meio da autodefesa.

Esses super personagens intercalam suas histórias com personagens bem menos “poderosos” como o olheiro que acredita estar sendo perseguido por um notório vigilante da cidade ou a menina que se divide entre a vida cosmopolita do centro da cidade e a rotina antiquada e supersticiosa de seu bairro periférico, lotado de criaturas sombrias e rituais de magia.

astro4 astro3 astro2(todas as capas foram desenhadas por Ross e são um trabalho primoroso como tudo que o cara faz)

Astro City recebeu uma quantidade insana de prêmios: Eisner de melhor Série Nova de 1995, melhor Série Continuada em 1996 e 1997 e Melhor Série Limitada em 1998. Diversas histórias receberam também o prêmio de Melhor História Serial. Recebeu o prêmio Harvey de melhor Série Nova em 1995 e de Melhor série continuada em 1997.

Além disso, ambos os autores, Kurt Busiek e Alex Ross, receberam ambos os prêmios em mais de uma ocasião em seu campo de atuação, roteiro e capas, respectivamente. Definitivamente não é uma historinha qualquer.

A série está sendo relançada no Brasil pela Panini e o número 1 saiu agora em Abril. É uma chance única de curtir algumas das histórias mais finas

Minha barba. Minha vida.