Atualmente, ao mesmo tempo em que prezamos pela individualidade, tudo, absolutamente tudo em nossa vida é massificado pela cultura de consumo ocidental. Nosso modo de vida nos expõe constantemente a tudo e todos e, ao final, diz “seja autêntico!”. Somos expostos a mais pessoas do que nosso pequeno cérebro de primata deveria saber que existem; quanto mais conhecer seus medos, inseguranças, talentos, fetiches, opiniões e o que mais a internet deixou confortável compartilhar para milhões de estranhos. E procuramos um jeito de ser diferente de cada uma dessas figuras para podermos dizer que somos um “eu”.

A felicidade no mundo pós-moderno está muito associada à ideia desse “eu”. Ter uma identidade e vivê-la de modo autêntico. E essa noção é extremamente perigosa por ser subjetiva o suficiente para ser manipulada por lucro.

Como ser feliz ao longo do tempo

A felicidade, ao longo de diversas épocas, esteve subentendida nas finalidades dos objetivos de cada indivíduo sob a perspectiva dos valores de seu tempo. Por exemplo: para muitos ocidentais, por muito tempo, servir a Deus era anunciado como o motivo de se viver. Mas, após o fim da vida física na Terra, tal pessoa seguiria viva em espírito no Paraíso, por ter sido um bom filho de Deus. Assim, podemos enxergar a felicidade como o verdadeiro objetivo final e o serviço a Deus como um caminho para atingí-la. Isso pode ser adaptado para praticamente todas as crenças, inclusive não religiosas. Até sistemas políticos muitas vezes são descritos como um caminho na tentativa de se aproximar ao máximo de uma sociedade de pessoas felizes.

Na sociedade do consumo, passamos por um fenômeno de eliminar essas alegorias acidentais. A felicidade é o próprio anunciado destino final. Apesar de uma aparente simplificação, isso permite a promessa da felicidade por muitos mais caminhos, o que, unido a uma crescente cultura de consumo, é uma enorme oportunidade de lucrar. Se a felicidade é o fim e desconhecemos o meio ao abandonarmos a adoção de certas regras para atingí-la, é possível fabricar um meio e vendê-lo. Não existe mais um grande objetivo coletivo: você deve primeiro entender quem você é, para, depois, entender o que essa pessoa misteriosa quer e precisa para ser feliz. Isso é assustador.

Se a felicidade é encontrada por meio da sua realização pessoal, ela passa a ser sua responsabilidade individual. Por essa ótica, as partes da sua vida que você pode controlar devem estar sempre voltadas para ser feliz, sem mais explicações do que isso é. Então, se você é infeliz, a culpa é sua. Isso tem dois problemas principais que abrem espaço para a venda de felicidade: não gostamos de responsabilidade e gostamos de explicações, como espécie. Gostamos de ter algo para culpar pelo que nos ocorre de ruim e algo para agradecer pelo que nos ocorre de bom. Se esses dois elementos são nós mesmos, a tendência de muitos é se agarrar na primeira alternativa coerente para isso ou então fazer tudo o possível para se tornar a melhor versão de si, sem nem ao menos saber o que isso significaria.

O mercado da felicidade

Dessas duas inseguranças surgem dois mercados de felicidade: o que te isenta do enorme peso de ser feliz e o que promete te ensinar a resolver esse peso. O primeiro muitas vezes é visto na retomada da religião, ou, ainda, na apropriação da espiritualidade oriental: mercantilizando práticas como o yoga, o ayahuasca, os cristais, que, apesar de poderem ser muito genuinamente benéficas como estudo, são muito simples de despir de qualquer real significado e vender como soluções completas e unas, que não requerem esforço da parte de quem as consome. Já o segundo faz o processo contrário e explora agressivamente a ideia de que o único motivo para infelicidade seria falta de vontade; assim, vende livros e palestras para que você encontre a ajuda que precisa em si mesmo.

A verdade é que a felicidade ser vista pela maioria como um objetivo final não precisa ser algo negativo. Mas a sociedade do consumo, no seu caráter de ser excessiva, exaustiva, expositiva, nos torna vulneráveis o suficiente para abandonar uma trajetória própria de relação com a felicidade na tentativa inevitavelmente falha de comprá-la, para não termos que enfrentar os baixos desse caminho sozinhos.

Há uma crueldade adicional quando percebemos a força da promessa da individualidade por trás disso, que é quebrada no próprio sistema que promete entregá-la. Não estamos vendendo felicidade para você, estamos vendendo o meio para que você possa encontrá-la sozinho! Boa sorte! E assim, o mercado da felicidade acaba, também, alvejando a nossa individualidade, nossa identidade, despindo-nos dela para que seja coerente vender a mesma resposta para milhares.

Você pode ser mais você?

Isso tudo para dizer, em suma, que a sociedade do consumo nos manipula a partir da seguinte filosofia: você não é feliz agora porque não está sendo verdadeiramente você. Compre o meu produto e você vai se sentir mais você.

Eu não acredito que podemos ser mais ou menos nós mesmos. Uma pessoa que não se sente ela mesma é o tipo de pessoa que não se sente ela mesma, não o tipo de pessoa que não está de fato deixando de ser autêntica. Ou seja, essa característica, sentir essa falta, seria uma adição à identidade dela, não uma subtração. Você está sendo 100% você o tempo todo porque você não tem outra opção. E ser diferente do que você era ou será não significa que cada versão não foi e será 100% você em diferentes tempos.

Além disso, existe uma mentira em dizer que a massificação e a individualidade se anulam. Apesar da danosa superficialidade com que somos vistos como massa, isso acidentalmente retoma a ideia de que somos todos Um. Uma consciência indivisível, uma gigantesca rede cujos nós são simultaneamente indivíduos e indissociáveis.

Veja assim: cada célula do seu corpo é uma. Ela tem um nome, uma função, ela nasce e morre sozinha. Mas ela é afetada pela rede de células que formam o seu tecido e não nos referimos a esse tecido a partir da particularidade de cada célula, mas sim como “João”, “Maria” ou o seu nome. Você é particular e igual a muitos. Isso pode coexistir. Estar em um conjunto não anula que você é 100% você 100% do tempo.

Apesar da ideia de estar sendo 100% você a todo momento poder soar desesperadora, é um escudo contra o ensinamento de consumo compulsório de que consumir preenche algo em você. Escudo esse que deixamos de lado quando queremos só deitar e ver um filminho e esquecer de trazer qualquer coisa do mundo real para mergulhar nele. Aqui entra o mercado do entretenimento.

Traídos pelo nosso conforto

A sociedade do consumo cria uma busca por felicidade que incentiva a individualidade ao mesmo tempo que a deixa cada vez mais distante. Ok. E cadê a parte que o título desse texto faz sentido?

Bom, o ponto é que isso é uma ótima notícia para o mercado audiovisual. Os filmes e séries que assistimos quando queremos entretenimento são possivelmente os produtos que nos pegam quando estamos mais vulneráveis. Às vezes, até esquecemos que são produtos. Às vezes, esse é até o intuito: mergulhar em um lugar que não existe, em que as coisas não acontecem com você. Abrir mão de qualquer escudo contra as estratégias que já somos grandinhos pra sacar nos outros ciclos. Se jogar no sofá, colocar uma série e esquecer o mundo. Mas ainda estamos submetidos à lógica capitalista que se aproveita dessa vulnerabilidade. Especialmente porque a busca por lazer, prazer, entretenimento, está intimamente conectada à vontade de chegar à felicidade.

Assim, ao nos abrirmos para a experiência leve e vulnerável de nos divertirmos, inclusa na exploratória busca do ser feliz, mas ainda não apaziguados da questão fundamental “quem sou eu?”, é inconscientemente reconfortante ver um personagem na TV em quem você pode se espelhar. É uma resposta simples, que adotamos como conforto temporário para a nossa identidade. Se você se identifica com um personagem, você se sente menos isolado, mais acompanhado, ao mesmo tempo que seu senso de individualidade é estimulado por poder “se assistir” em terceira pessoa e acidentalmente “se analisar”.

Como o audiovisual se aproveita disso na prática?

Atualmente existe um “gênero” de conta no Twitter que faz muito sucesso: séries sem contexto. A conta, feita por fãs, posta um print da série homenageada e não fornece contexto aos seguidores, com intuito de divertir os fãs e intrigar e interessar os que não são familiares com a série, funcionando como divulgação gratuita.

Recentemente, a conta oficial da série Sex Education mudou seu nome para “no context sex education”. A adoção desse tipo de modelo de conta na rede social oficial de um produto midiático diz muito sobre o modo com que esse produto foi pensado e como ele pretende chegar ao seu público. Indica que o programa reconhece o potencial viral das redes sociais e que afetar o público-alvo a partir das curtidas e compartilhamentos independentemente desse público ser fã da série em si. Eles só precisam gostar daquele momento publicado para engajarem.

Assim, podemos entender muitos produtos midiáticos atuais como um conjunto de gifs em potencial. Programas pensados por prints. Conteúdo picotado de bandeja para ser espalhado pela internet e chegar ao máximo de pessoas possível.

Além desse formato, o conteúdo em si é pensado dessa maneira. Para aumentar o engajamento, ele cria uma identificação genérica. Os arquétipos de personagens são feitos para gerarem falas e cenas que possam rodar na internet e fazer alguém pensar, sem contexto algum, “nossa, isso é muito eu”.

Muitos personagens são esvaziados de complexidade verdadeira em nome dessa “relatability” – uso do inglês aqui porque “relacionabilidade” não tem o mesmo efeito quase irônico que a palavra em inglês atingiu, tamanha a saturação desse formato. Esses personagens são pensados para serem vulneráveis na medida em que haja identificação, mas não ao ponto em que o público possa não gostar dele. O público gosta de amar e de odiar. Personagens genuinamente difíceis de se formar uma opinião a respeito estão sumindo do mainstream porque é mais difícil haver espelhamento, apesar dele ser mais significativo caso aconteça.

Em suma, somos ensinados que nosso objetivo final é ser feliz. Mas que precisamos chegar nesse caminho sozinhos, a partir de entendermos quem somos. Desesperados com essa questão impossível, estamos vulneráveis à exploração do mercado que promete tirar essa responsabilidade e nos entregar felicidade facilmente. O mercado audiovisual, naturalmente feito para entreter, se aproveita ainda mais do seu momento mais sensível da sua rotina em busca da felicidade para te entregar identificação falsa e fácil, para que você venda o produto deles gratuitamente na internet em gifs, memes e prints que fazem você dizer “meu deus, isso é muito eu”.