Imagine sua sala de estar: todos os momentos que você e sua família passaram nela, a família que antes residia, o momento em que ela foi construída, o que vai acontecer a ela no futuro e a paisagem que ela agora esconde. Todo lugar retém para si uma infinidade de acontecimentos caóticos, muitas vezes sem qualquer conexão, mas todos particulares e dotados das belezas únicas que ali ocorreram. Assim começo a tentar explicar o que é Aqui, de Richard McGuire, uma reflexão esplêndida sobre espaço, tempo e narrativa.

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Há tempos uma graphic novel não me impactava como Aqui: conforme virava as páginas, os retratos temporais que aconteceram naquele lugar mudavam, as vezes seguindo a narrativa, outras me colocando em um tempo completamente diferente, mas sempre na mesma posição. Com a visão de apenas um ângulo, acompanhamos as diversas mudanças que uma sala de estar em Nova Jersey sofreu ao longo da história, desde como era no início dos tempos até o final dele. Vemos as famílias que ali se instalaram, a floresta que abrigava os indígenas na pré e pós-colonização, a fauna, flora, mudanças climáticas, a casa dos barões que fora construída próxima, assim como a valorização do local pela proximidade à propriedade histórica.

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A relação de causa e consequência é apresentada com um detalhismo impressionante. É completamente tangível o esmero de McGuire com as minúcias da obra, desde a mobília à vida das famílias que ali viveram, sempre utilizando-se da sobreposição de quadros e do espectro temporal como fundamento e fator determinante para os acontecimentos apresentados. As surpresas são constantes ao longo da narrativa, sem demagogia alguma somos transportados para 3 bilhões de anos antes de Cristo, quando a Terra era coberta de gases, simbolizados pelas maravilhosas aquarelas do autor. Não importa em qual (ou quais) época estamos, as paisagens bucólicas pré-humanidade não são menos interessantes do que os momentos de conflito ali vividos ou do futuro reservado àquela paisagem, essa linearidade da expectativa pode nos dizer muito sobre a efemeridade de cada momento, a forma como nossas memórias os retém e a relevância deles nos quadros seguintes.

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Inicialmente concebido em uma tira de seis páginas publicada na Raw Magazine em 1989 depois de McGuire assistir uma aula de Art Spiegelman (Maus), o conceito de Aqui se desdobrou posteriormente no seu formato absoluto, lançado no Brasil pela Quadrinhos na Cia. (linha editorial paralela à Cia das Letras), com suas 360 páginas. O quadrinho é definitivamente uma aula de estética, narrativa e principalmente, sobre como inovar a linguagem.

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Richard McGuire é contribuinte regular do New Yorker e possui trabalhos publicados na New York Times, Le Monde, Libération, etc. Além de ilustrador, é também diretor de dois curtas animados (Peur du Noir; Micro Loup), autor de livros infantis, adultos e baixista da banda Liquid Liquid.

Crítico mirim, desenhista amador, escritor júnior e futuro diretor (se tudo der certo).