O diretor norte americano Wes Anderson é considerado por muitos críticos um dos criadores mais originais da cena cinematográfica atual. Seu cinema é inconfundível, crítico, expressivo, original, espirituoso, mordaz, requintado visualmente e, sobretudo, carregado de uma consciência de linguagem que o distancia das produções de mero entretenimento, pois proporciona ao seu espectador uma experiência instigante em termos de percepção. Assim é seu mais recente filme “O Grande Hotel Budapeste”, que ainda conta com um elenco espetacular: Ralph Fiennes, Jude Law, F. Murray Abraham, Edward Norton, Mathieu Amalric e Tilda Swinton, entre outros.

O filme foi lançado no Festival de Berlim, onde o diretor ganhou o Urso de Prata, o prêmio do júri. Mas Anderson não seduz somente a crítica especializada, pois possui milhões de fãs espalhados pelo mundo todo (basta conferir no youtube a grande quantidade de paródias utilizando a sua estética, criadas pelos seus fãs e seguidores; recriações que vão desde filmes de terror, filmes eróticos, ou até mesmo, os clássicos Forrest Gump e O Homem Aranha, filmados com a linguagem de Wes Anderson).

O Grande Hotel Budapeste está situado em Zubrowka, fictícia república do leste europeu, e é cenário de grandes aventuras vividas pelo concierge Gustave H ( Ralph Fiennes). Fino, elegante, discreto e extremamente profissional, ele é o guardião de estórias e tradições que pouco a pouco foram sendo esquecidas e deixadas de lado. Além de zelar pelo grandioso hotel, cuida dos hóspedes com total dedicação, especialmente das hóspedes, geralmente idosas, ricas e carentes, como Madame D (Tilda Swinton, perfeita, como sempre) que lhe deixa como herança uma valiosa pintura, causando descontentamento no seu filho Dmitri (Adrien Brody), que apela para o truculento Jopling (Willem Dafoe) para recuperar o quadro. Com Zero Moustafa (Tony Revolori), empregado em período de experiência no hotel, que acabou tornando-se seu amigo e cúmplice, Gustave enfrenta militares, opositores, prisão, criminosos, sem perder a ternura e a classe que está impregnada em seu personagem.

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Bom lembrar que a produção do filme foi livremente inspirada na obra do austríaco Stefan Zweig, que se exilou no Brasil no século passado e cometeu suicídio em Petrópolis em 1942. Nas mãos de Anderson, o material vira um filme crítico, espirituoso e bem conduzido, ratificando o seu talento e estilo único.

É exatamente através do fiel escudeiro de Gustave, Moustafa (F. Murray Abraham), já idoso, na década de 60, que conhecemos as peripécias que viveu, ainda na década de 30, quando era um jovem e inexperiente aprendiz no hotel. Quem ouve a sua história é um escritor (Law); note-se que Anderson utiliza três tipos de tela (Normal, Wide Screen e Quadrada) para indiciar as mudanças de registro da memória do narrador, criando um jogo entre os tempos passado, presente e futuro.

Já podemos perceber, diante desta “confusão”: o que mais encanta neste filme é o tratamento que o diretor dá ao poder da narrativa e do narrador e suas capacidades transformadoras. Apesar de não termos vivido determinado acontecimento, este nos é contado pelas palavras daquele que o vivenciou, o narrador (a grande sacada metalinguística do filme, que abre e fecha com uma menina lendo um livro – cujo nome é O Grande Hotel Budapeste, que é a história contada no filme). Livro dentro do filme dentro do livro: parece que Anderson nos alerta que narra-se para rememorar; a palavra como salva-vidas do passado, que morreria vítima do esquecimento, não fosse o poder do relato, da narrativa, do narrador. Ouvindo uma outra voz, caminhamos ao encontro de nossa própria subjetividade, função primeira de toda e qualquer boa obra de arte, principalmente na literatura e no cinema, pois ao representar nossa experiência e relacioná-la à experiência do outro, constituímos nossas respostas sígnicas ao mundo, materializamos nosso existir histórico e social… rastros de nossa existência. Mediatizar o passado numa representação, num texto, num filme, é colocá-lo no universo da inteligibilidade, uma eterna aprendizagem que evolui no fluxo do tempo.

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É comum nas obras de Wes Anderson os diálogos intertextuais, e em “O Grande Hotel Budapeste”, percebemos um dialogismo com as ideias de Walter Benjamin, para quem o homem moderno está marcado pela perda da experiência e está destituído de laços que eram mantidos pela troca dessas mesmas experiências. A narração era responsável por esta troca e era na tradição que a experiência se realizava. A arte de narrar estaria em extinção porque a sabedoria também o está.

A aparente intrincada história de Anderson, torna-se divertida pela habilidade do diretor, que monta uma narrativa rápida e fluida, apesar da profusão de detalhes e personagens que vão habitando a memória do narrador que constantemente revisita o passado em flash-backs. O diretor parece querer transmitir a ideia de que através da narração de fábulas antigas, da fala dos idosos, dos provérbios, das estórias transmitidas de geração a geração, se mantinha a troca de experiências, se construiam os laços. Os velhos, por exemplo, seriam uma fonte de cultura onde o passado se conserva: “só perde o sentido aquilo que no presente não é percebido como visado pelo passado. O que foi não é uma coisa revista por nosso olhar, nem é uma idéia inspecionada por nosso espírito – é alargamento das fronteiras do presente, lembrança de promessas não cumpridas”, nos lembra Marilena Chauí.

Ponto importante nas obras do cineasta, a cenografia, o vestuário, a direção de arte, a trilha sonora, tudo funciona de modo harmônico e deslumbrante. Não é, portanto, por acaso que Wes Anderson é considerado um arquiteto da linguagem visual, suas cenas apresentam imagens em perfeita simetria com seus encantadores travellings e uma paleta de cores que impressiona pela harmonia e coerência estética que, certamente, parecem ter sido “pintadas” por um artista plástico.

Esta talvez seja a grande habilidade do diretor, trabalhar com maestria elementos visuais diferentes, personagens diversos, gêneros variados (o filme mescla comédia, suspense, romance, ação e drama) sem nunca se perder em sua ousada e ambiciosa empreitada.

Anderson leva a sério sua missão de cineasta, criando narrativas como se fossem uma forma de alimentar o homem de experiência: nenhum espectador sai impune de seus filmes.

Acreditamos que esta missão seria narrar no presente, para se resgatar o passado e projetar o futuro: algo muda e algo permanece no rio-cinema da memória. A experiência cinematográfica é o lugar dos momentos da vida em que o homem se inteira de si mesmo por meio de um rememorar, de uma atualização de um tempo perdido na memória, que retorna para redimensionar o agora, deixando entrever novas perspectivas. Cinema como um tempo a ser redescoberto. Eterna magia.

 

IMG_0245João Carlos Gonçalves (Joca)
Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

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