A essa altura do campeonato, todo mundo já sabe o que é Black Mirror. Aliás, não só sabe como já entende que vivemos na sociedade em que Black Mirror já virou adjetivo para aquela situação em que a gente percebe que a tecnologia está silenciosamente tomando o controle das nossas vidas. A série britânica já tem quatro temporadas, a última disponível na Netflix desde dezembro de 2017, e ao todo tem 19 episódios, cada um contando uma história diferente girando em torno da tecnologia e a sua influência sobre os seres humanos.

A quarta temporada teve uma repercussão imensa nas redes sociais, tanto positiva quanto negativamente. O que não podemos negar no entanto, é que a série cresceu, e por causa disso em cada episódio foi possível ver mais referências e ideias mais claras sobre qual o papel da tecnologia nas nossas vidas atualmente. Um dos episódios em que essa análise é bem fácil de ser percebida é justamente o primeiro, USS Callister. Então, se você ainda não o viu, cuidado com os spoilers!

USS Callister mistura temas “dark” com novas tecnologias, no caso uma espécie de realidade virtual, mas ao mesmo tempo é muito mais do que isso. Confira o trailer do episódio:

Além de toda a pegada Black Mirror, a ideia de frota intergalática que viaja pelo espaço dá ao episódio um visual vintage, mas na verdade as referências mais interessantes estão escondidas por trás desse exterior colorido e emocionante.

Primeiramente, no trailer temos o Comandante Daly heroicamente liderando sua frota e lutando contra os vilões. Ele é amado e querido por todos, claramente o superior daquele universo. Porém, é apenas naquele universo. Aproximadamente dez minutos depois nós descobrimos que o USS Callister só existe dentro de um programa de VR (virtual reality), e Daly é apenas um homem comum como todos nós, que não só não é o comandante de uma frota intergalática como trabalha num lugar onde não é reconhecido, com pessoas que o ignoram e o tratam como se ele não importasse.

A nossa admiração por Robert Daly se transforma em uma espécie de pena. Fica claro que ele quer respeito e uma conexão verdadeira com alguém que o respeite de verdade, e a gente sabe que isso poderia acontecer caso ele enxergasse o melhor de si e se esforçasse em construir conexões com seus colegas de trabalho. Isso, é, se ele fosse o nosso protagonista.

O real plot-twist desse episódio é que o primeiro personagem que nós conhecemos é, na verdade, o nosso antagonista. Quando voltamos a ver Robert como o Comandante Daly, descobrimos que ele é um tirano que preferiu dar a voz a pior versão de si mesmo: para conseguir o respeito que merece, ele abusa de seus poderes torturando cópias que ele fez de seus colegas de trabalho na realidade virtual, tranformando-os em monstros intergaláticos, tirando sua habilidade de falar e obrigando-os a adorá-lo de maneiras humilhantes.

No entanto. essa ideia de apresentar o antagonista de forma inesperada não é nova. Aliás, é uma referência direta a uma série que já recebeu o título de antecessora de Black Mirror. The Twilight Zone (ou Além da Imaginação, como era chamada aqui no Brasil) era uma série da década de 1960 que seguia mais ou menos a mesma ideia de Black Mirror, exceto que onde hoje é a tecnologia, nos anos 60 era o sobrenatural que atuava sobre a vida dos personagens.

Existe um episódio de The Twilight Zone chamado It’s a Good Life que conta a história de uma cidadezinha em Ohio isolada do resto do mundo. Um monstro vive lá e controla todos os habitantes por meio de poderes como ler mentes e persuasão. No final da introdução desse episódio, quando já estamos cientes do quanto esse monstro é perigoso, nós descobrimos quem ele é: um garotinho de seis anos de grandes olhos azuis, chamado Anthony.

Anthony cria uma espécie de próprio universo particular, que não é virtual como o de Robert Daly, mas que assim como em USS Callister tem pessoas que fazem suas vontades e atendem aos seus desejos por medo de sofrerem consequências.

O criador de Black Mirror, Charlie Booker, disse que se inspira e admira The Twilight Zone, e deixou isso claro em USS Callister, episódio que para ele também é um exemplo clássico do que pode acontecer com um homem consumido pelo poder que a tecnologia oferece, e explora o que pode acontecer quando a gente cria um mundo onde podemos agir de acordo com os nossos desejos mais sombrios.

Seja pelas surpresas que aparecem ao longo do episódio ou pelas referências que só aqueles que prestam atenção em cada detalhe percebem, podemos dizer que Black Mirror é uma série inteligente que mudou a forma como enxergamos a sociedade, a tecnologia, e agora até os seriados antigos que não tinham nem cor. Afinal, se a gente não sabe de onde vai vir a próxima nova tecnologia, então de onde será que vai vir o próximo episódio de Black Mirror?

Todas essas pequenas análises foram feitas pelo canal do YouTube Lessons from the Screenplay, que analisa roteiros de longas, séries e curtas atrás de informações curiosas que fazem sentido para o conceito geral das histórias. Para saber mais, confira o vídeo abaixo, que conta cada detalhe de cada episódio citado aqui no texto:

eu toco teclado numa banda chamada internet.