O que aconteceria se você largasse dois homens sozinhos para trabalhar em um farol (possivelmente assombrado) de uma ilha isolada? Ainda bem que o cineasta Robert Eggers e seu irmão Max Eggers se dispuseram a fazer essa pergunta. E a tentar respondê-la também, claro.

E o resultado disso tudo foi O Farol. O filme pode trazer muita estranheza em seu primeiro contato, o que aconteceu comigo por exemplo, mas ao refletir um pouco mais sobre seu conteúdo e referências, é possível trazer à luz alguns símbolos interessantes no meio de tanta bizarrice.

O Farol lida de uma maneira muito forte com a masculinidade. Principalmente com o comportamento masculino, seja ele afetivo ou sexual. O filme moraliza sobre como as relações masculinas são construídas de maneira danosa em volta de um jogo de poder, no qual o agente ativo que possui domínio das situações pode gozar dos prazeres da vida, enquanto o agente passivo deve trabalhar duro a fim de servir o seu superior, o seu chefe.

Até mesmo o farol em si representa (segundo o próprio diretor) a imagem de um pênis ereto. Mas é possível encarar a sua luz (não literalmente, por favor hein) como um ser próprio, uma divindade, a luz eterna que seduz, aquece e hipnotiza aqueles dois homens.

E por falar em divindades, Robert Eggers também confirmou em entrevista que os protagonistas são reflexões de duas figuras mitológicas: Prometeu e Proteu.

Segundo a mitologia grega, Prometeu é o titã que rouba o fogo divino do conhecimento dos deuses e o entrega para a humanidade. Enfurecido, Zeus então o condena ao castigo de ficar acorrentado sobre uma pedra pela eternidade, sendo que uma águia devoraria o seu fígado todos os dias na mesma hora. Lembrou de uma certa cena do filme envolvendo Thomas Howard, o personagem de Robert Pattinson?


Prometeu Torturado Pela Águia por Christian Griepenkerl (1839-1916).

Enquanto Proteu, segundo os antigos mitos gregos, é um deus marinho ora filho de Netuno ora filho de Oceano (dependendo da versão). Essa inconsistência de versões também se aplica à sua personalidade, uma vez que Proteu era um ser muito difícil de se lidar, com a capacidade de alterar a sua forma de maneira ilimitada e por possuir conhecimentos infinitos sobre passado, futuro e presente. Lembrou de certas cenas do filme envolvendo Thomas Wake, o personagem de Willem Dafoe?


O Infernal Proteu por Erasmus Finx (1695).

A similaridade entre os nomes também acrescenta bastante à poesia da obra, sustentando uma teoria de que os dois protagonistas na verdade são uma representação da mesma pessoa.

E por falar em seres mitológicos, se você já leu algum conto de HP Lovecraft é praticamente impossível não notar a nítida inspiração na obra desse autor de terror clássico. As histórias de Lovecraft abordam como principal temática seres desconhecidos e inomináveis, como deuses antigos vindos da imensidão do espaço ou das profundezas do oceano. Como suas dimensões não conseguem ser interpretadas pela mente humana, a sua mera presença é capaz de seduzir e enlouquecer qualquer pessoa…

Outra forte referência para a produção do filme, sobretudo a direção de arte, com certeza é o Simbolismo, o movimento artístico que nasce no século XIX sob uma tentativa de se opor ao cientificismo e realismo, argumentando que a arte não poderia ser retratada somente sob o ponto de vista da realidade.


Villa by the Sea por Arnold Böcklin (1878)


Desenhado dedicado ao escritor Maurice Silville por Jean Delville (1888)


Voo das Bruxas por Francisco Goya (1797)


Pôster feito por fãs reproduzindo uma cena icônica do filme


Hipnose por Sascha Schneider (1904)

E de fato O Farol não se apresenta sob o ponto de vista da realidade, brincando com narrativas não confiáveis, elemento este também presente no filme Coringa de 2019, sendo um fiel retrato dos nossos tempos uma vez que desde o inicio da disseminação em massa de fake news e o fortalecimento da pós-verdade, a realidade tornou-se fluída, subjetiva, liquefazendo-se. A realidade deixou de ser real e passou a ser virtual. Faz todo o sentido se resgatar o simbolismo como uma tentativa de traduzir o contexto fluído que a realidade da sociedade atual está inserida.

Reforçando essa ideia, a narrativa de O Farol se apresenta com um certo onirismo, uma certa embriaguez, na qual os protagonistas flertam com a paranoia e o delírio, fazendo tanto os personagens quanto os espectadores se perguntarem se tudo aquilo está realmente acontecendo de fato.

O filme conta com referências óbvias sobre a cultura costeira norteamericana, com direito a chapéus de marinheiro, cachimbos e navios de madeira engarrafados. Esses símbolos casam perfeitamente com a estética arcaica do filme, em preto e branco, remontando aos filmes antigos e clássicos de terror.

E por falar nisso, O Farol foi filmado com câmeras antigas, em formato 4:3 e em preto e branco, o que rendeu à produção sua única indicação ao Oscar, por melhor fotografia. Muito merecida, por sinal, uma vez que o estreitamento da imagem confina os atores, dando destaque para as suas brilhantes atuações e também ressalta o comprimento do farol, reforçando o aspecto divino e misterioso sobre a construção.

Em suma, O Farol é um filme experimental muito rico, daqueles que você precisa assistir mais de uma vez pra se mergulhar fundo nos mistérios e símbolos que compõem a obra. Só cuidado pra não se afogar. Ou enlouquecer…

Amigão da vizinhança, torcedor do Bahia e mestre pokémon nas horas vagas