“E depois de uma tarde de quem sou eu, e de acordar a uma hora da madrugada em desespero, eis que as três horas da madrugada eu acordei e me encontrei, calma, alegre, plenitude sem fulminação. Simplesmente isso:
eu sou eu, você é você, é lindo, é vasto, vai durar.
Já sei mais ou menos o que vou fazer em seguida, mas por enquanto, olha pra mim e me ama. Não, tu olhas pra ti e te amas. É o que está certo.”
(Clarice Lispector)

Dando continuidade ao que discutimos no texto da semana passada e ampliando a relação dialógica entre as linguagens do Teatro e do Cinema, creio que o espetáculo da Mostra Internacional de Teatro – MIT-SP que melhor resgatou a Crise da Representação nas artes foi “Stifters Dinge” do diretor alemão Heiner Goebbels. A entropia estética já se faz presente na sua proposta inovadora e provocante: O espetáculo é uma instalação sonora e imagética que busca experimentar o cruzamento das artes visuais com a música, não apresentando uma narrativa propriamente dita, mas sugerindo ficções, como que um convite à imaginação do público.

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Aparentemente dispensando a presença de atores em cena, o que presenciamos é um Cenário formado por três espaços cênicos com água, aglomerado de pianos que tocam sem músicos, árvores secas, imagens projetadas, luzes, fumaça e vozes que recitam textos pré-gravados: estamos diante daquilo que Umberto Eco chamou de Obra Aberta que depende da percepção do espectador e sua fruição ao que é visto-ouvido-sentido. As linguagens se fundem: teatro, cinema, música, artes plásticas e performance.

Outro espetáculo que vale ser mencionado como exemplo da perfeita adequação entre linguagens artísticas é o show “Abraçar e Agradecer” que celebra os 50 anos da carreira de Maria Bethânia. A veia teatral da artista já foi comprovada em vários de seus espetáculos, principalmente o antológico “Rosa dos Ventos”, sem esquecer que a estréia de Bethânia se deu no histórico espetáculo Opinião em 1965, um dos primeiros a apresentar uma dramaturgia teatral aliada à música.

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Em “Abraçar e Agradecer” vemos uma cantora-atriz intercalando canções e textos poético-literários (Clarice Lispector, paixão de Bethânia, aparece com destaque) habitando com perfeição e deslumbramento um espaço cênico formado por uma tela de LED que transmite imagens dialógicas que acabam por emoldurar as canções-poemas interpretados pela artista: é como se estivéssemos diante de uma grande tela de cinema, só que deslocada do centro para a parte inferior do palco. A iluminação também colabora para o tom teatral do show. A diretora e cenógrafa Bia Lessa comenta o seu processo criativo: “Decidimos colocar a tela no chão e não onde convencionalmente é utilizada. Não criaríamos um cenário, mas, de certa forma, uma ausência de cenário. Em vez de um décor criaríamos uma geografia – a estrada por onde a artista caminha – o seu chão – um conceito singelo – mas firme. A utilização do LED nos traria modernidade/atualidade que nos pareceu interessante – usar tecnologia de ponta para dialogar com a trajetória da artista. Dois pólos: passado e presente juntos.”

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Após assistirmos ao espetáculo nos perguntamos onde começa e termina a relação Música, Literatura, Teatro, Cinema e Artes Plásticas? O que fica é a emoção da voz de Bethânia incorporando as palavras e o Pensar de Clarice Lispector:

“Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e, mesmo assim, me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços o meu pecado de pensar.”

Só uma coisa me incomodou (e muito): a incontrolável necessidade de uma grande maioria do público em utilizar seus aparelhos celulares para registrar em fotos e vídeos aquilo que, na verdade, deveria ser apreciado somente com os olhos e coração. Silêncio! (como pede e titula a última canção interpretada por Bethânia).

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João Carlos Gonçalves (Joca)

Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

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