Como usuário já cotidiano destes dois sensacionais recursos de acesso a filmes e música, chamo a atenção para algumas dimensões comportamentais derivadas de seu uso.

Uma, a confirmação de uma ideia que circula há algum tempo: o acesso é mais importante que a posse. Guardar a mídia material ou mesmo a memória dela em nossos aparelhos simplesmente deixou de ser necessário. Estantes e gavetas como espaços físicos; smartphones com a maior memória possível. Enfim, toda a forma de armazenamento privado deixa se ser necessária. É inevitável olhar para as minhas centenas de cds, dvds e blurays com uma sensação de obsolescência. Eles vão perdendo o sentido utilitário e se transformando em objeto de culto.

A liberdade dada pelo acesso instantâneo e irrestrito esconde, é sempre bom lembrar, a dependência absoluta à qual nos entregamos ante os provedores de acesso. Por via das dúvidas, guardo meu piano acústico e mesmo um gramofone à corda, para caso de hecatombe, apagão, ou invasão de “Walking deads”.

Outro aspecto que quero evidenciar é o recurso confortável das sugestões dadas pelos dois ambientes virtuais. Elas são feitas com base numa declaração de preferências iniciais mas, melhor do que isto, elas tomam como base o que você de fato vai acessando. Deve haver, naturalmente, outra variável de natureza comercial nas sugestões, é claro.

De toda a forma, conforme acessamos conteúdos, vai-se desdobrando uma série de sugestões por semelhança. E aqui reside outra daquelas ambivalências inevitáveis em tudo. De um lado, somos apresentados a coisas de que provavelmente gostaríamos e das quais talvez não tivéssemos conhecimento nunca. Em contrapartida, corremos o risco de acomodarmos sobre o campo do idêntico, do mesmo, do seguro; de não corrermos riscos e podermos de fato expandir o campo do possível em nossa representação.

De minha parte, estou explorando as bordas das sugestões, entre o “de sempre” e o “inédito” para mim, com graus progressivos de distanciamento de meu próprio repertório.

O Apple Music tem acesso a um acervo mais abrangente que o Netflix, mas já me aconteceu de procurar algum artista ou disco e não encontrá-lo (coisas de rock dos anos 70 ou de música independente paulistana dos anos 80). Aqui, a impressão é de que aquilo que não for traduzido para esta nova mídia, passará por um processo de des-existência. Se o provedor parece ter disponibilizado tudo, o que não pode ser encontrado ali não “existe” mais. Daí eu também guardar algumas dezenas discos de vinil não relançados em cd, acervo que, agora, por resistência à tendência digital, ganhou nova vida e status.

No último mês, não acionei nenhuma vez o acervo de cerca de 3000 músicas que tenho no celular; ouvi sem parar músicas e artistas diferentes. Há meses, não compro mídias físicas; mesmo livros, só aqueles ainda não disponíveis em formato digital. Estou considerando seriamente me desfazer da TV a cabo.

É outra relação com as coisas.

Daí a terceira observação, que é um depoimento. Netflix e Apple music tem um forte potencial aditivo.

desanti

Pedro de Santi

Psicanalista, doutor em psicologia clínica e mestre em filosofia. Professor e Líder da área de Comunicação e Artes da ESPM.

   

 

 

Os colunistas do Newronio são professores, alunos, profissionais do mercado ou qualquer um que tenha algo interessante para contar.