Umberto Eco, que acaba de nos deixar, foi um dos pensadores que fizeram minha cabeça desde a graduação quando, fascinado, descobri suas obras teóricas. Desde então, o que mais me chama a atenção em seus escritos é a paixão pela literatura e pelos livros.
Assim que soube de sua morte, uma certa nostalgia habitou o meu cotidiano e creio que este sentimento melancólico de resgate da minha memória afetiva vai me acompanhar por um bom tempo.
“Obra Aberta” e “Apocalípticos e Integrados” são livros estão presentes nas minhas aulas de Fundamentos da Comunicação, mas foi com a obra “Sobre os Espelhos e Outros Ensaios” publicado no Brasil em 1989 que eu, efetivamente, percebi a sua genialidade e a multiplicidade de seu repertório cultural. Foi incrível sacar que o próprio título do livro já apontava para a sua visão múltipla e cambiante sobre as ciências e as artes. Assim, no Espelho construído por Umberto Eco os reflexos da Alta Cultura e da Cultura de Massa se embaralham e ganham igual representatividade. O autor passeia com a mesma desenvoltura e prazer pelos seriados de TV, por filmes que vão Woody Allen a Caçadores da Arca Perdida, ET, Indiana Jones e Super-Homem, pela literatura de Dante, Balzac, Borges e Lewis Carroll, pelo Teatro e Artes Plásticas.
Com 84 anos, Umberto Eco nos presenteava com sua lucidez sempre provocativa. Seu último livro de ficção “Número Zero” descreve a redação imaginária de um jornal criado para desinformar, difamar adversários, manipular, chantagear, ou seja, um verdadeiro manual da comunicação de má qualidade, onde o leitor mergulha em fatos que não consegue determinar se são reais ou inventados. Um retrato de nosso tempo?
O próprio escritor nos ensina: “Em semiótica, ‘narrativas neutrais’ são histórias que nós contamos sobre o que nos acontece. Paradoxalmente, cada pedaço de narrativa neutral é já uma seleção, uma interpretação. Ninguém conta tudo o que viu, mas sim os aspetos mais proeminentes da história. Há uma diferença entre o que publica “The New York Times” e “The New York Post”, mas devemos abandonar a ideia de que um jornal é um vidro transparente através do qual se olha para o mundo.” Para pensar.
Ultimamente Umberto Eco discorria criticamente sobre os paradoxos da tecnologia, principalmente a Internet e o “falso” acesso ilimitado a qualquer tipo de informação e nos advertia que o não saber selecionar criticamente a informação equivaleria a informação zero: “Uma orquestra organizada pode tocar uma sinfonia, mas dois mil instrumentos juntos só fazem barulho. O que temos agora é barulho generalizado, no meio do qual estamos a perder o conhecimento do passado, mesmo do passado próximo. Quando eu tinha dez anos, sabia o que acontecera 30 anos antes. Há um concurso aqui em Itália de perguntas sobre cultura geral. Uma vez perguntaram quando é que Hitler e Mussolini se encontraram pela primeira vez, e todos disseram 1945 – ninguém se lembrou que em 45 estavam ambos mortos. É uma geração incapaz de olhar para trás a não ser através da Wikipédia. Mas olhar para trás sem pensamento crítico não serve de nada: Jorge Luis Borges criou uma personagem, Funes, que se recordava de tudo e era um idiota.”
Mas lembramos que Umberto Eco também possuía um inteligente senso de humor, como revelado no texto “Lamentamos comunicar-lhe que seu livro…”, em que, ironicamente, propõe uma brincadeira com algumas obras literárias consagradas, submetidas e recusadas a um hipotético editor. Uma passagem hilária se dá no parecer do clássico “Em busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust:
“Trata-se, sem mais nem menos, de uma obra comprometida, talvez muito grande; mas é possível vendê-la através de uma série de livros de bolso.
Tal como está é impraticável. Falta nela um trabalho vigoroso de depuração. Toda pontuação, por exemplo, terá de sofrer uma completa revisão. Os períodos são muito cansativos e há alguns que chegam a ocupar uma página. Com um bom trabalho de revisão que os reduza a dois ou três linhas cada, com uma melhor utilização do ponto e do parágrafo, a obra teria muito a ganhar. Se o autor não concordar, o melhor será não editá-lo.”
Pra encerrar, uma bela e inesquecível cena me vem à memória nesta travessia afetiva. No pavilhão da Itália da última Bienal de Veneza havia uma instalação que lembrava a arquitetura de uma grande biblioteca, nas paredes brancas se projetavam frases de Umberto Eco falando do seu amor aos livros. O visitante caminhava pelas rampas deste labirinto borgeano e finalmente se deparava com um vídeo que termina com Umberto Eco caminhando pelos corredores de sua biblioteca de mais de 30 mil volumes.
Umberto Eco vive em seus escritos.
Livros: representação (e)terna da memória humana.
João Carlos Gonçalves (Joca)
Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.
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