É muito curioso e confortante revisitar as velhas tirinhas dos Peanuts: o lendário cartunista Charles Schulz soube muito bem como aproveitar o formato curto dos quadrinhos nos jornais para criar histórias lindas, minimalistas, questionadoras e nostálgicas. O amadurecimento das crianças sempre coloca o realismo da vida e a inocência da imaginação em harmonia para que os sentimentos de perda, luto, saudade e recuperação fossem transpostos para os leitores.

Por mais que Snoopy seja apenas um cachorro, ele questiona sua própria existência dentro do balão de pensamento. Não é difícil nos identificarmos com a áurea cômica e leve em torno do personagem. O ícone ecoou tão bem no tempo que mesmo hoje, 67 anos após o início da publicação nos jornais, ainda sabemos de longe identificar a casinha vermelha e simples que mais parece um cogumelo vermelho e quadrado, na qual Snoopy se encaixa perfeitamente quando deita no telhado.

Como uma simples casa de cachorro pode indicar tanta humanidade no Snoopy? Ao longo das tirinhas, o cão começou a andar sobre duas patas, esse detalhe fez com que as crianças daquele universo começassem a tratá-lo menos como um cachorro e mais como uma pessoa. Como um sinal de paz interior, a casa do Snoopy sempre foi o local onde o cão podia exercitar sua capacidade de pensar e fantasiar. A quebra da imaginação e volta à realidade sempre foi uma pauta em evidência nas tirinhas de amadurecimento, mas em 66′ Schulz não apenas quebrou o minimalismo dos seus desenhos, mas colocou fogo no Santuário do cãozinho, criando um dos arcos mais profundos da história dos Peanuts e das tirinhas de jornal.

Primeiramente, Snoopy lamenta os bens que se perderam dentro da casa, sua arte e entretenimento. Na manhã seguinte, ainda observando a fumaça que sobrou, o cão anda ao redor da casa e lamenta, sendo uma das poucas vezes em que a casa foi mostrada sob outra perspectiva.

As semanas nas quais a história continuava eram acompanhadas de silêncio, um misto de esperança e desespero para o cachorro que buscava em quê acreditar, mas não havia nada a ser feito; a casa já pegou fogo e nem o seguro resolveu o problema. A cada situação que Snoopy tenta recorrer à casa, a realidade acaba falando mais alto e isso força seu amadurecimento em aceitar os fatos.

A maneira como Lucy encara o problema pode ser vista sob as três perspectivas apresentadas nas tirinhas acima: na primeira, ela não enxerga o problema e as consequências deste; ela busca por um culpado e isso a faz repetir a mesma probabilidade três vezes. Na segunda, ela culpa o “carma” divino, colocando-a sobre Snoopy, enquanto na terceira, o discurso da menina torna-se reducionista, tenta colocar o sofrimento inevitável do ser humano como motivo para não se atentar ao problema, mas Snoopy não deixa de ser um cachorro.

Mesmo que seja feita de madeira, pregos e tinta, a casinha de Snoopy continha também os sentimentos do cachorro por ela, seu choro ao vê-la desabando e os mistos sentimentos quando ela a vê reconstruída não são à toas: ele não procurava uma casa nova, mas sim a sua velha. Snoopy associava a casa à sua própria dignidade: um lugar onde ele pudesse descansar, pensar e retomar suas memórias.

Um fã assumido do trabalho de Schulz é Bill Watterson, criador das tirinhas do Calvin e Haroldo. A inspiração é primária e as dicotomias entre infância e vida adulta; razão e emoção; simplicidade visual e complexidade sentimental também são colocadas como outra belíssima história sobre amadurecimento.

Crítico mirim, desenhista amador, escritor júnior e futuro diretor (se tudo der certo).