Atenção: este texto foi feito pensando para quem já assistiu Breaking Bad e Better Call Saul, então cuidado, contém spoilers! 

Se você viu Breaking Bad mas não Better Call Saul, o texto está sem spoilers até a divisão “Kim”.

Spin-offs são sempre uma aposta arriscada. Será que o público vai gostar de ver o mundo dessa narrativa de outra maneira? Será que eles querem o mesmo ritmo? Os mesmos personagens? O que mudar, o que deixar? Better Call Saul (2015-2022) apostou em uma mudança quase completa em relação à série original, Breaking Bad (2008-2013), e levou a melhor. A série é reconhecida e renomada por si só, tornando-se praticamente um produto à parte e com uma base de fãs própria, mesmo tomando quase todas as escolhas diferentes da original.

Enquanto Breaking Bad foca nos eventos, com um ritmo acelerado em que o espectador consegue entender os personagens através da maneira com que eles se relacionam com cada evento, Better Call Saul tem um ritmo bem mais lento e toma seu tempo se aprofundando em quem são esses personagens e por que eles são assim. Não tem a mesma pegada de tiro, porrada e bomba. A escolha de pegar um personagem, Saul Goodman, que foi muito utilizado como alívio cômico, e dar a ele tamanha humanidade através de um contexto cada vez mais triste, teve que ser perfeitamente executada para dar certo. E foi. E deu. 

As duas séries enganam o espectador no começo em relação a qual é o tema. Breaking Bad aparenta ser sobre desespero. Um professor de química submisso, doente e falido tentando o que pode para deixar dinheiro para a família antes de morrer. Mas, conforme Walter vai tomando gosto pelo que faz, o espectador percebe que desde o começo foi sobre poder. Já Better Call Saul parece, justamente, ser sobre poder. Um pilantra que quer a qualquer custo atuar como advogado para conhecer as brechas da lei e se dar bem com elas. Mas, depois de seis temporadas, o espectador percebe que, no final das contas, era sobre amor. 

Esses macrotemas – poder e amor – podem ser vistos em praticamente todos os relacionamentos dos protagonistas, Walter e Jimmy (nome verdadeiro de Saul). Neste texto, quero investigar como esses temas aparecem nos relacionamentos com suas respectivas esposas, Skyler e Kim, e como o público reagiu a cada uma dessas mulheres.

Masculinidade em Breaking Bad

Antes de aprofundar as figuras específicas de Skyler White e Kim Wexler, vale entender a relação da obra com os conceitos de masculino e feminino. Recentemente, a seguinte cena de Breaking Bad viralizou no Twitter:

A tradução da fala é “Um homem provém. E ele o faz mesmo quando ele não é apreciado, ou respeitado, ou mesmo amado. Ele simplesmente aguenta e o faz. Por que ele é um homem.” A legenda da página chamada Alma Masculina diz “Breaking Bad foi uma das últimas séries sem frescura na televisão americana”. 

Refrescando o contexto dessa fala, Walter estava prestes a largar o ramo da metanfetamina e parar de produzir. Gus, que lucra muito com o produto dele, faz um discurso metódico e preciso para manipulá-lo a não tomar essa decisão, apelando para sua masculinidade fragilizada. Ao longo de toda a série, Walter encontra na sua profissão uma maneira de se reafirmar como homem, como macho. Seu ego está profundamente abalado desde o começo por não ser uma figura de autoridade para seus alunos, por ter perdido uma oportunidade de emprego multimilionária e por não conseguir prover para sua família. Encontra no poder uma maneira de se colocar como figura máxima de virilidade, lado seu que ele nunca tinha praticado antes do câncer. Dessa forma, o autor do tweet se encontra igualmente vulnerável ao acreditar que as palavras de Gus têm qualquer fundo de sinceridade. E uma boa parte do público de Breaking Bad não reconhece que a masculinidade de Walter não é algo a ser venerado, mas lamentado. 

Breaking Bad explora a temática do poder de uma maneira muito relativa ao universo do masculino. Quem tem mais, quem pode mais, quem manda mais. Essa competição violenta e o orgulho dos personagens é o que garante que de forma cada vez mais megalomaníaca, seja impossível encontrar um ponto de parada. O que uma vez foi uma desculpa de prover para a família inevitavelmente se revela como um gosto pela posição de poder e pela sensação de ser temido, e ele sempre quer mais.

As personagens femininas da série atuam como um contraponto a essa tendência. No entanto, elas não são muito aprofundadas, de maneira geral. A personagem com maior foco é Skyler, que por uma boa parte da série estava alheia à situação em que seu marido tinha colocado sua família. Eventualmente, ela descobre todo o contexto, todo o perigo e o dinheiro e sua resposta a isso incomoda muitos fãs. Depois de um longo processo, Skyler acaba se tornando, também, gananciosa e ambiciosa, mas essas características são apresentadas de maneira mais feminina. Mais calculista, cuidadosa, estratégica. Skyler atua por trás das cenas e não age para ser a maior no ramo, mas para conseguir o melhor para si. 

Antes de seguir para a análise das mulheres da série, vale ressaltar que Gus também é um personagem, no sentido de relação com poder, mais do universo feminino. Aqui, não estamos falando de gênero, mas do masculino e feminino abstratos. Gus, que é canonicamente gay, não tem interesse em assumir riscos muito grandes que possam comprometer o que ele já conquistou, nem se posicionar como o chefe constantemente. Ele mantém tudo correndo como ele quer de maneira sutil, e por isso, em última análise, de maneira mais bem sucedida do que Walter.

Skyler

Skyler White é a personagem mais odiada da série. O ódio a ela é tamanho que, durante o auge da série, a atriz, Anna Gunn, relatava sofrer ataques verbais e pela internet, mesmo tendo feito uma performance belíssima da personagem. Entre todos os assassinos, traficantes, entre todos os crimes de Breaking Bad, para o público, ser uma mulher sem carisma é o mais grave. 

This image released by AMC shows Anna Gunn as Skyler White in a scene from “Breaking Bad.” The fifth season of the popular series premieres Sunday, July 15, 2012 at 10 p.m. EST on AMC. (AP Photo/AMC, Ursula Coyote)

Skyler é uma mulher comum. Ela estava preocupada com o marido que enfrentava um câncer, até começar a desconfiar que ele escondia algo. Walter insiste em mantê-la no escuro por muito tempo, mas eventualmente ela descobre tudo. O que uma mulher comum tem como opções ao descobrir que está casada com o maior e mais perigoso produtor de metanfetamina do país? Sair do casamento? Ela foi casada com ele por décadas, claro que não seria tão simples. Além disso, ela não conhece mais o marido nem o perigo que ele é para sua vida e a vida dos seus dois filhos juntos. Denunciar? De novo, não há como saber o tamanho do poder dele. Até onde ela sabe, isso poderia não levar a lugar nenhum, ou mesmo preso ele poderia encontrar pessoas para irem atrás dela por vingança. Nós, como espectadores, sabemos que ele conseguiu matar oito prisioneiros dentro de suas respectivas cadeias em menos de dois minutos. Há medo demais envolvido. Walter a colocou involuntariamente nessa situação e agora ela não pode dar as costas para ele. 

Skyler acaba decidindo que, já que não há escapatória, ela quer ajudar. Ela se oferece para lavar o dinheiro, ou seja, tentar manter tudo o mais invisível possível para as autoridades, o que nada mais é do que uma maneira de proteção. Nada mais justo, não? Bom, para uma boa parte do público de Breaking Bad, não. Isso faz dela indecisa, infiel, uma vaca. Queria pular fora e agora quer a parte dela.

Skyler não é uma santa. Ela sinceramente não é nem mesmo legal. É uma mulher comum, com todos os seus defeitos, casada com um demônio, mas que se recusa a se submeter a ele. E ser cúmplice sem ser submissa, para muitos espectadores, é inaceitável. 

Kim

Kim Wexler, por outro lado, é adorada pelos fãs de Better Call Saul, e eu me incluo nisso. Enquanto Jimmy é um pilantra tentando se encaixar no mundo dos advogados, Kim é uma advogada tentando se encaixar no mundo de Jimmy. Ela ama ele completamente, e por algumas temporadas esse é o seu único traço. Ela salva ele de todas as roubadas em que ele se enfia, cobre por ele sempre que ele precisa, atende sempre que ele chama. Ela trabalha tanto por ele que chega a se acidentar por exaustão, mas está sempre lá, primeiro abaixo, e eventualmente conquistando um lugar ao seu lado. 

As confusões de Jimmy não são tão graves quanto as de Walter, e Kim, sempre ciente de tudo, se diverte com elas. Ela tenta elevar o marido, mas ele a puxa para as suas maneiras e ela cede. Chega um ponto da série em que ela começa a contestar, colocar seus limites e se firmar como uma personagem mais complexa, e Jimmy começa a rever a maneira com que lida com Kim e eles se aproximam mais. O relacionamento deles fica mais saudável entre os dois, mas, infelizmente, isso significa mais caos para todos os outros personagens. 

No aprofundamento da personagem, descobrimos um pouco sobre a infância de Kim. Filha de uma mãe alcoólatra, sempre tentou jogar dentro das regras, vendo o estado de sua mãe que parece emocionalmente ausente. A mãe ridiculariza suas tentativas de ser boa e parabeniza a filha quando ela é má. Quando Kim rouba um par de brincos, a mãe faz uma cena na frente do policial para depois comprar o brinco para a filha como presente pela rebeldia – brinco que Kim usa até a idade adulta durante toda a série. Assim, compreendemos a relação de Kim com a rebeldia, e a associação que ela faz entre esse tipo de ato e receber afeto. A pergunta frequentemente levantada pela série “Mas porque uma mulher assim quer estar com um homem assim?” encontra sua resposta freudiana com essa contextualização. 

Kim vai se sentindo melhor quanto mais rebelde ela se permite ser ao lado do homem que ama. E ele responde mais a esse amor conforme ela se solta e o ajuda. Kim é, essencialmente, uma mulher muito mais perturbada do que Skyler White. Longe de ser uma mulher comum e saudável. Mas seu carisma e, sobretudo, sua devoção a Jimmy McGill garantem uma resposta muito diferente do público a ela quando ela perde de vista o mundo em nome da sua ambição – não por dinheiro, mas ainda uma grande ambição.

Destinos

Os finais das duas séries para os protagonistas são perfeitos. São quase inevitáveis, como se tudo que aconteceu não pudesse levar para outro destino. Os dois ganham o jogo à sua maneira – Walter White morre depois de deixar tudo pronto para morrer, como era seu plano desde o começo; Jimmy McGill leva uma sentença de 86 anos na cadeia, mas só depois de conseguir um acordo inacreditável de 7 anos e se provar como advogado e como pilantra. Mas como esses finais se relacionam com as mulheres por trás desses homens?

A temática do poder e do amor voltam. Walter não está pensando em Skyler há mais de um ano quando tem o seu final. Ele faz questão de fazer o seu dinheiro chegar na ex-esposa e nos filhos, reforçando a exagerada importância que ele coloca nesse bem e como ele enxerga seu casamento como mais um ambiente onde ele pode exercer seu poder. Ele leva seu objetivo de prover para a família a um extremo tão grande que expõe todos a riscos inimagináveis, traumas para o resto da vida e tira deles a presença do homem que eles de fato amavam e precisavam. Para ele, dinheiro é o mais importante, então ele ignora a mera possibilidade de que Skyler possa preferir que eles entrem em dívidas para tratar o câncer e continuem como uma família que se ama. Ela não pôde ter uma opinião no caminho que sua vida tomou por conta do orgulho de seu marido que, além de chefe de um ramo de tráfico, também precisava se provar como o homem da casa. Skyler consegue milhões de dólares que ela não pediu, mas perde tudo sobre sua vida antiga. Em outras palavras, as decisões de Walter moldam o destino de Skyler.

Já Jimmy passa anos, todo o tempo de duração de Breaking Bad, vivendo longe de Kim. Durante esses anos, podemos perceber que a presença de Kim e a sua influência em Jimmy eram maiores do que pareciam no começo de Better Call Saul. Sem a mulher que ama e que o traz equilíbrio, Jimmy se torna um babaca completo. O homem que uma vez vimos arruinar sua imagem e perder dinheiro para poder reunir uma senhora com as suas amigas, agora sugere que matem qualquer um no caminho de seus clientes. 

Ele não teve escolha de se separar de Kim: ela, como o elo centrado do relacionamento que sempre foi, se retirou para não machucar mais ninguém. Mal sabia ela quantas pessoas Saul machucaria. Jimmy assumiu completamente o seu alter ego mas, quando foi pego, se viu com a possibilidade de voltar a ser o Jimmy McGill, o homem que Kim amava, e não mais Saul Goodman, que ela desdenhava. Jimmy escolheu 86 anos de cadeia para poder olhar a mulher que ele ama nos olhos de novo. Ele demora para perceber que isso é mais importante do que o resto, e quando percebe, é tarde demais.

Mas o destino de Kim, ao contrário do de Skyler, não foi completamente decidido pelo marido. Pelo contrário, foi ela quem escolheu sair de perto, e conseguiu. Mesmo sofrendo por se afastar do homem que amava, Kim saiu da transe em que estava ao lado dele, acabando com vidas alheias tamanho o divertimento que isso trazia. As decisões de Kim moldaram as decisões de Jimmy.  Skyler é uma mulher comum e apavorada. Kim é uma mulher traumatizada e apaixonada. Esses fatores resultam em uma mulher que defende o que é seu e se afasta do marido, e outra que aceita todas as suas ações em absoluta submissão – mesmo que, no final, Skyler esteja forçadamente submetida aos desejos do marido e Jimmy demonstre ter a mesma devoção por Kim. A resposta do público a essas personagens, vendo Skyler como antagonista e Kim como parceira, revela o desejo masculino por uma mulher que esteja sempre disposta a acolher defeitos e recolher pedaços, sem demonstrar jamais traços de egoísmo ou de limites.