Contos

Papoulas – final

By Eric de Carvalho

September 08, 2022

Um conto de Koli.

“Família não te faz sangrar”

Uma criança. Deveria ter aproximadamente uns cinco anos. Seus olhos eram amarelos, como os de Río, mas eram puxados mais para o mel do que enxofre. Possuía cabelos lisos, negros até metade dos braços e que nunca haviam conhecido um pente. A criança olhava com curiosidade para a acólita, mais especificamente para suas faixas sujas. 

Por um instante, Ríonach pensou que aquela criancinha a ajudaria a cicatrizar as feridas e punir quem as deu,  mas ela não mexeu um músculo, só as orbes, que iam dos joelhos aos olhos, dos olhos aos joelhos.

— Você está perdida? —  A criança não respondeu. —  Onde estão seus pais?

Nenhuma resposta. Não tenho tempo para isso, o garoto precisa do leite de papoula e estou aqui, enrolando com uma pirralha perdida.

— Se estiver perdida,  tente ir naquela direção, — apontou para o leste —  os comércios ficam para lá e com certeza alguém vai saber onde seus pais estão. Caso não esteja, – pensou em suas palavras antes de dizê-las —  boa sorte com o que quer que esteja fazendo. 

Quando foi virar para trás, para ver se ainda a encarava, não enxergou nenhuma orbe amarelo-mel. Ríonach nunca mais viu aquela menininha.

Voltou muito mais rápido do que foi. Subiu diretamente para o quarto de Garmon e, graças aos deuses, encontrou o cômodo vazio. Era meticulosamente arrumado. Os cadernos estavam organizados na estante por cor e número de edição. A cama não tinha uma ruga sequer. Um grão de poeira para contar história. 

Na janela, descansava uma jardineira de barro negro com três papoulas —  um botão, uma em seu auge e outra a beira da morte. 

Procurou nos baús e nas caixas que alcançava, mas nada de um frasco com anestesia pronta. Garmon deve fazer apenas o necessário para o frasco. Isso explicaria a flor morta e a outra madura.  

Cortou o botão da papoula e coletou o líquido branco que escorreu. Mal chegou a cobrir a base do frasco, mas teria de servir. Diluiu e arrolhou. 

Estava correndo de volta para os garotos quando passou pela cozinha e um cheiro a laçou como um dornês com chicote. Estendeu a cabeça para a porta e viu uma das cozinheiras mexendo uma panela com algo assaz delicioso. Limão, alecrim e coelho. Eram alguns dos sabores que reconheceu de imediato, mas pareciam ter outros mil ali. Guardou o frasco leitoso na roupa e adentrou a cozinha com olhos tão brilhantes como os de um cachorro pidão. 

A cozinheira levantou uma das sobrancelhas e acompanhou para onde o olhar da garotinha ia — a panela fervente. Soltou a sombra de um sorriso e gesticulou com a cabeça para uma pilha de cumbucas de madeira. A jovem foi num pé e voltou no outro com duas tigelas na mão. 

A senhora não perguntou sobre a segunda, mas se o fizesse, Río diria que estava com muuuita fome. Ou que era para Garmon. Saiu da cozinha a passos rápidos em direção aos garotos.

Equilíbrio era uma incógnita para a acólita. Quando precisava carregar uma pilha de livros, conseguia e um pouco mais, mas quando tinha que andar o mais rápido possível, sem correr e com duas tigelas cheias de guisado sem derramar, não era o melhor. Derramou alguns legumes durante o percurso, no chão e na roupa. 

Sabia que havia acertado o caminho quando ouvir os gritos abafados do garotinho ferido. Por sorte, nenhum animal havia chego antes dela. 

O cheiro do guisado laçou ambos também. Munim diminuiu o volume do choro e Hugin se preparava para brigar. Com uma corda de pião. Uau.

— Milorde, me ajude com os potes —  um arbusto alto que não se lembrava não a permitia passar para a clareira. — Por favor.

Hugin deu a volta no mesmo arbusto que não era tão largo como era alto. Antes de pegar uma das tigelas, gesticulou para o caminho que fez, apontando como se fosse óbvio e ela fosse estúpida. Estúpido.

— Guisado de coelho com batatas e cenouras —  deu uma fungada longa e profunda. — Cozinheira Malina nunca decepciona. Munim, prove um pouco. 

Río ajoelhou-se com um gemido ao lado do garotinho e, só quando pegou a mão dele, notou que esqueceu de pegar as faixas. 

Uma mão quente e úmida segurou seu punho.

— Ouse. Apenas ouse fazer algum mal ao meu irmão e eu mesmo a estrangulo com a tão querida corrente. 

Ela levantou uma sobrancelha.

Era para ter sido uma ameaça? Que mixuruca. 

Segurou o riso e disse que não se atreveria. 

Interrompeu o lorde e virou alguns goles na boca de Munim, que contorceu o rosto. 

— A sopa tá melhor.

— Eu sei, garotinho, eu sei, mas é para o seu bem. Isso vai ajudar a dor passar. Se chama leite de papoula e tem propriedades analgé…

— Esse leite tá azedo, mil…eistre – disparou o garoto com tanta ingenuidade que fez a aprendiz rir fraco.

Mileistre. 

Precisou de mais força para não rir mais. 

— É, eu prefiro um suco de maracujá para dormir do que isso aqui —  Hugin continuou a alimentá-lo. —  Como tá a dor?

— Doendo. 

— Justo. Logo, logo melhora — arrancou uma faixa aparentemente limpa de sua roupa e, vagarosamente, enrolou-a na ferida do garoto. Seu primeiro elo seria medicina. Estava decidida.

Río puxava assuntos frívolos, Munim, aos poucos, se inclinava em direção ao lorde. Seus olhos lutavam para ficar abertos, mas o leite de papoula fazia efeito. Dei uma dosagem adulta, não infantil. Caquinha. Ela instruiu o menino a não resistir, que quando ele acordasse, a dor teria passado, e ele obedeceu — encostou em Hugin e deixou-se levar pela droga.

— Você não precisava ter feito isso — Hugin cortou o silêncio.

— Não foi nada – deu outro gole no guisado não tão quente. —  Estava aprendendo leite de papoula hoje quando ouvi vocês gritando. Eu ia gritar com vocês.

— E por que não fez isso?

— Você é meu lorde. Não cometeria desacato nem morta. Garmon me daria um sermão até o verão voltar.

Houve uma pausa. Ríonach estava muito concentrada em seu guisado que não percebeu o olhar do lorde em seus joelhos, ou melhor, na mancha de sangue na roupa que encostava em seus joelhos.

— Ele é bem rígido com você, né?

— Não saberia metade das coisas que sei se não fosse por ele.

— E seu pai?

Ela ponderou por alguns instantes.

— Não conheci meu pai. Garmon disse que eu e minha mãe arruinamos a vida do meu pai. Ele era um meistre também, sabia? Quero ser igualzinha a ele. 

Hugin sabia o que houve com o antigo meistre. Ouviu algumas criadas lamentando sobre o finado alguns meses antes, mesmo que o fato tenha ocorrido há quase dez anos. Uma pena que não tenha conseguido manter os votos.

— E sua mãe?

— Ela morreu no dia em que eu nasci. Por isso Garmon cuida de mim. É a única família que me restou.

— Família não te faz sangrar.

Ela olhou diretamente para ele e seus olhos se encontraram. Amarelo no marrom. Terra no sol. Açafrão na canela.  

— Eu ralei quando estava correndo buscar o leite e as tigelas. 

— Não sou idiota, Ríonach. Até eu sei a diferença de alguém que se ralou para alguém que ajoelhou no milho. Quem ralou não esconde.

Ela se calou de novo. Deveria ter enfaixado assim que chegou nas torres. Havia vacilado feio. 

Garmon a faria sangrar mais.

— Acho que estamos quites, né? Nenhum de nós conta nada sobre hoje e tocamos a vida.

Río assentiu e enrolou seu próprio cachecol no pescoço do lorde, por mais que uma gripe seja inevitável para ele agora. 

— Mais cedo, ele te chamou de irmão. Ele…

— Não é de sangue. Ele é bastardo de Alberon, mas o conheci antes de saber isso. Éramos irmãos antes de sermos assim formalmente. 

Ela assentiu e eles terminaram de comer o guisado com papos aleatórios sobre estrelas, corvos, músicas e si mesmos. Levaram Munim para o lugar que o garoto chamava de casa e retornaram juntos para as torres, em um silêncio confortável. Antes de se separarem para os deveres, Hugin estende o pião que ela havia oferecido mais cedo para ela. Um convite.

— Amanhã, no mesmo lugar, quando o sol estiver a pino — foi a última coisa que o lorde disse antes de seguir seu rumo.

 No dia seguinte, Hugin acordou resfriado e foi Ríonach quem cuidou dele (e conseguiu, graças aos deuses, levar Munim até o quarto do lorde sem que ninguém os visse, além do menino do carvão). Eles conversaram, conversaram e conversaram. Era estranho, para ela, falar tanto de si. E era estranho, para eles, se sentirem confortáveis com alguém que era um fantasma nos corredores até o dia anterior. 

Fim.