A ideia de que os fins justificam os meios já é amplamente conhecida; independentemente da sua opinião sobre o assunto, ela é discutida em diversos ambientes.
No livro “Talvez você deva conversar com alguém”, a protagonista, uma terapeuta, afirma que é impossível conhecer as pessoas profundamente e não acabar gostando delas. Antes que você julgue o livro pelo nome, não, ele não é um livro de autoajuda. Ele se trata da história de uma terapeuta americana que conta sobre os dois lados da análise, falando sobre seu trabalho e suas consultas quando decide voltar a fazer terapia após um grande término. A afirmação que ela faz explica que conhecendo com o tempo tanto os traumas como as motivações de cada pessoa, é impossível que você não crie um laço de empatia.
Ao longo do livro ela atende um paciente que não é exatamente… simpático. Ele é desrespeitoso, grosseiro e odeia fazer terapia, mas quanto mais ela conversa com ele, mais ela entende o porquê de algumas atitudes e partes de sua personalidade.
Acredito que todos já tenham assistido a algum documentário ou reportagem sobre assassinos em série que mostram suas infâncias terríveis, cheia de abusos e abandonos. Logo, em que parte de sua trajetória esse passado assombroso deixa de explicar suas atitudes?
Esse balanço é muito trabalhado na série Bojack Horseman, que conta a história de um cavalo ator em Hollywoo (cidade de Hollywood no mundo do seriado), que é um completo filho da puta. Peço desculpas pelo vocabulário, mas não existe palavra ou expressão que o descreva melhor. Por ser famoso, ele não é responsabilizado por nenhuma de suas babaquices: todos ignoram ou aceitam seu comportamento. Como não é responsabilizado, ele age como um babaca ainda maior, como forma de testar até onde esse privilégio vai. Ao longo da série, o ódio do público pelo protagonista é colocado à prova quando começam a apresentar elementos de sua infância, mostrando como seus traumas e acontecimentos refletem em suas ações.
Bojack afirma diversas vezes que quando as pessoas o conhecem de verdade, elas passam a odiá-lo, porque enxergam que ele é uma pessoa ruim, que faz coisas horríveis. Entretanto, nenhuma dessas pessoas o conhece de verdade, entendendo de onde ele veio e quais as raízes de seu comportamento. Conforme mostram seu passado, o público entende diversos comportamentos problemáticos de seus pais, que refletem na forma como ele age. De ser negligenciado até ter um contato precoce com álcool, Bojack Horseman teve uma infância deprimente e vazia, que deixaria qualquer um traumatizado. Com isso, tendemos a culpar seus pais pelo comportamento abusivo que ele possui.
Mas a bola de neve não para por aí: próximo ao final da série, a infância de sua mãe é apresentada, mostrando que essa também não passou por uma infância fácil, nem cresceu com amor e carinho vindo de seus pais; ambas sendo fortes causas para suas atitudes como mãe. Seu pai também não era flor que se cheire, destratando e culpando a filha pelas dores e dificuldades da família. Como seguir a partir daqui? Se conforme aprendemos sobre seus passados, nos apegamos e conectamos mais com cada personagem, em qual passado esse privilégio acaba? Se Bojack é ruim por causa de seus pais, sua mãe é ruim por causa de seus avós e seus avós provavelmente eram ruins por causa dos pais deles, sobre quem cai essa responsabilidade?
Neles mesmos. Quanto mais emocionalmente conectados estamos a alguma coisa, menos críticos e observadores ficamos; fazendo com que criemos laços empáticos e afetivos, mas isso não tira a responsabilidade de cada pessoa sobre suas próprias ações.
Milhões de crianças têm infâncias horríveis e abusivas e isso explica muitos comportamentos contorcidos, mas nem todas elas se tornam assassinos e estupradores. Como comentei em meu texto https://newronio.wpengine.com/explica-mas-nao-justifica-encanto-parte-2/ , o passado de alguém e as condições que essa pessoa possui explicam seu comportamento, nos entregam o porquê, mas não o justificam. Bojack só consegue começar a melhorar quando ele entende que culpar seus pais não vai transformá-lo numa pessoa melhor, e que para ser essa pessoa ele precisa agir de maneira melhor.
Não acho que a meritocracia exista, nem quero que esse texto se torne moralista, dizendo que se alguém quiser ser melhor, sua vida vai melhorar e ponto. Digo apenas que a infância dele já passou, seus pais não possuem mais nenhum controle sobre sua vida e não tem nada que ele possa fazer sobre seu passado, a única escolha que ele tem é o que fazer a partir de agora. E apesar de conhecermos seu passado, é importante deixar em mente que ele toma decisões ruins e prejudica todos a sua volta. Um babaca com um passado ruim continua sendo um babaca.