“Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação.”

André Breton, fundador do movimento surrealista, escreveu um manifesto com o líder do exército vermelho russo, Leon Trotsky, chamado “Por uma arte revolucionária independente.” O manifesto, por definição, é uma crítica às propostas de Stalin para a literatura e a cultura. Aplicando aos dias de hoje e ao Brasil, recomendaria o uso da estrutura da frase de Breton para uma nova proposta:

Não será o medo das interpretações pós-modernas que farão com que abandonemos uma historiografia nacional.

Na foto, Diego Rivera, Leon Trotsky e André Breton: autores do Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente.

O texto é uma análise sobre arte, mas, para contextualizarmos nossa conversa, gostaria de trazer algum ponto de convergência para estarmos alinhados na hora da discussão: voltando à frase alterada, a proposta de não abandonarmos uma historiografia nacional, com artigo indefinido, parte do ponto de que não possuímos, de fato, uma base histórica para a nossa concepção enquanto brasileiro.

As principais figuras que se propuseram a analisar o Brasil não são historiadores, por exemplo, mas sociólogos que analisam uma nação sob a perspectiva cultural, como Gilberto Freyre. O problema é o método. Freyre, Da Matta ou Sérgio Buarque de Holanda não devem ser descartados, mas utilizá-los como base histórica é um problema. Quando falamos de perspectiva nacional, poderíamos trazer nomes como Afonso Taunay, Francisco Varnhagen ou Pedro Calmon, cada um com dezenas e dezenas de escritos de 15 ou mais volumes sobre temas específicos que pautam o caráter da nossa história, do café aos bandeirantes.

A arte não deveria desviar de tal foco. A música e a cultura são, assim como o futebol, ferramentas políticas que podem ser usadas pelo poder para dominar e para libertar. Fazer com que essas ferramentas estejam sob controle popular é fundamental, mas de nada adianta estar no controle do povo se este foi esquecido de sua própria história; seja por campanha difamatória realizada por setores pequeno-burgueses com interesse em exportar o capital, seja por interferências imperialistas no conhecimento do povo sobre si mesmo, como no ataque sistemático enfrentado pelos símbolos nacionais.

“Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá”

Na versão política da Canção do Exílio de Oswald de Andrade, vemos o caráter histórico da escrita do modernismo brasileiro. A terra não tem mais palmeiras, mas sim Palmares, enquanto quem gorjeia agora é o mar e não mais as aves. Ao longo do poema, vemos que quem ganha destaque é o operário, é o negro do quilombo, além de mencionar a luta de classes e abrir mão de um falso pacifismo.

A consciência histórica nacional na arte tem que superar a falsa ideia de uma história que não teve guerra, assim como superar a visão pós-moderna de que devemos olhá-la sob uma perspectiva cultural e antropológica. Somos um povo formado de escravizados, assim como um povo formado por bandeirantes que expandiram o solo brasileiro. Um povo que começou com uma faixa de terra e que, com confronto e resistência às invasões holandesas, espanholas e francesas, conseguiu atingir uma unidade territorial que nos fortalece até hoje.

Aplicando em Oswald, o final de seu poema nos traz exatamente à crise enfrentada pela modernidade (da sua época), que é a negação de uma cidade crescente e do processo de industrialização.

“Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo”

Quando contextualizamos o caráter nacional da nossa cultura à arte, podemos mencionar alguns momentos modernistas para seguir o diálogo. Começando na Semana de 22, o primeiro momento da revolta modernista, nota-se uma forma estética abstrata e futurista, agindo de acordo com uma ideia nacional de exportação: o Manifesto Pau-Brasil.

Aqui, defendia-se que o Brasil não tinha que ser um importador da arte estrangeira, mas sim produzir uma cultura própria e totalmente nacional. Nascida e produzida em território brasileiro, com aspectos exclusivos da sociedade brasileira e exportar igual fazíamos com o café. Em suma, o Manifesto Pau-Brasil representava a produção de uma cultura própria por meio da arte.

Seguindo, o segundo movimento (e momento) modernista a ser destacado é a guinada dada, principalmente por Oswald de Andrade, para a lógica da antropofagia. A ideia de Oswald, Mario de Andrade e Raul Bopp, dentre outros, era de que só a antropofagia fosse capaz de nos unir. A lógica da luta de classes estava agora enraizada no movimento modernista, seis anos depois da semana de 22.

“Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados.”

No Manifesto Antropófago, a ideia é não só exportar, mas consumir nacionalmente o que for produzido. Come-se o estrangeiro, entrando na alusão, para assim desenvolver a sua própria força.

Tocando a bola de volta para Breton e puxando seu camarada Trotsky para a conversa, como ele defendia, precisamos de uma radicalização para pensar em mudar algo. Não há revolução, segundo o Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente, que não comece com uma radicalização da forma, literária e artística. Compreende-se que o ser humano muda à medida que o artista também vai mudando. E essa mudança, na arte, precisa vir pautada em uma consciência que não descarte os símbolos presentes na cultura nacional.

A arte não deve estar presente apenas nos museus, mas em todas as avenidas, becos e esquinas. A arte deve ser feita do povo e para o povo, aos moldes do país real em detrimento do país oficial, pois, assim como dizia Machado de Assis, existem dois países: o Brasil real e o Brasil oficial. Enquanto o Brasil real é bonito e expressa o melhor do brasileiro, o país oficial é cafona e burlesco.

Em suma, anseio por uma arte que retome o caráter popular da cultura nacional. Que olhe para o pobre, mas que não abandone os símbolos que fizeram o Brasil ser o que é hoje.

Por uma arte que não ignore as vanguardas portuguesas que moldaram quem somos em nome de uma falsa ilusão de que seria melhor caso as invasões holandesas e francesas tivessem sido bem sucedidas, enquanto não defende uma visão maniqueísta da nossa história, definindo-a por boa ou ruim.

Por uma arte que inclua o trabalhador no centro do seu objeto de expressão e que consuma, sim, o que vem de fora, mas construindo internamente o que viria a ser uma expressão popular.

Por uma arte, sobretudo, revolucionária e independente.

“Ela virá, a revolução, e trará ao povo não só direito ao pão, mas também à poesia.” (Leon Trotsky)

Contando algumas histórias nas minhas próprias contradições.