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Olhe para cima para olhar pra baixo!

By FelipeRAG

March 29, 2022

Do roteiro explícito às críticas veladas, o filme que concorreu ao Oscar defende a obviedade por meio da comédia escrachada. A premissa de Don’t Look Up é a mesma da nossa realidade, mudando apenas o agente causador da extinção humana para ver se o recado é melhor compreendido: um cometa acabará com a nossa espécie e o tempo para tomar ações está acabando.

Troque “um cometa” por “o aquecimento global”, porque é a partir daqui que iniciamos a nossa conversa.

A crença de que o filme é uma sátira à pandemia, apesar de coerente, não tem bases reais. O roteiro do filme, anterior ao aparecimento da doença, veio ao mundo em 2019, sendo uma crítica à postura dos governantes, da mídia, da sociedade civil e da própria comunidade científica perante as mudanças climáticas.

Nos arredores da década de 90, falar de aquecimento global condizia com explicar para uma criança que caso ela não se comportasse, o homem do saco estaria aqui para levá-la. De forma geral, a realidade que o filme retrata é um grupo de cientistas que sabe o que viu mas não faz a menor ideia de como se expressar, sendo aproveitado pelo populismo de líderes políticos que, para fins positivos ou negativos, deseja apenas ter uma base eleitoral mais forte para as eleições seguintes.

Mesmo com a crítica explícita ao republican way of life, entrando um pouco mais na perspectiva subjetiva de Don’t Look Up, encontramos uma entidade mais incisiva e mais centrada por trás dos políticos e empresários, que agem como baratas tontas: o capital.

O capital persuadiu a ganância de um empresário bilionário que convenceu o governo de que era uma ideia melhor explorar o cometa do que destruí-lo, fazendo com que a presidente dos Estados Unidos utilizasse o aparato estatal para interferir na opinião pública em conjunto com a mídia e o personagem do DiCaprio, representando a parcela da comunidade científica que abre mão dos valores para buscar a aprovação pública.

Por trás desse mar caótico de relações perversas, quem se destaca é a personagem de Jennifer Lawrence, por ser a única em destaque que enxerga a realidade desesperadora e não busca agradar os ouvidos sensíveis de um interesse midiático pela positividade falsa.

“Paranóia é a consciência aguda da fragilidade da vida” – Luiz Felipe Pondé

As características da sua personagem são, a grosso modo, ser pensativa, combativa, não aceitar que os diversos setores se dobrem pelo interesse do capital e tentar, ao seu alcance, alertar a sociedade civil do que está para acontecer.

Por enxergar a realidade e se apresentar em contraposição à perversão material, a jovem cientista acaba sendo taxada de louca e histérica – fazendo jus ao machismo histórico da nossa realidade, onde a própria palavra histeria deriva do grego hystera, que significa “útero”.

Enquanto o cientista que se dobra à mídia é visto como inteligente, a outra cientista é tirada para Maria Madalena. Mas, assim como a escolha de Jesus foi pela mulher marginalizada pela sociedade, o filme induz à crença de que a escolha popular deveria ter sido ouvir e seguir a personagem de Jennifer Lawrence.

Ao invés de receber os louros dos canais de imprensa, dos governantes ou dos próprios internautas, ela optou por passar seus últimos dias ao lado dos também marginalizados pela sociedade. Jovens mais pobres, rebeldes e que passavam as noites bebendo e conversando nas ruas, sem entenderem como era a realidade dos que estavam no poder mas, mesmo assim, ousando criticá-las.

“Existe o país real e o país oficial. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos. Mas o país oficial, esse é caricato e burlesco.”

– Machado de Assis

Ao fim do filme, sua personagem se relaciona com Quentin, interpretado por Timothée Chalamet, que basicamente vive nas ruas e não tem todo o aparato estatal e midiático o influenciando. Na prática, o que ocorreu foi uma decisão pelo mundo real em detrimento do mundo oficial. Um mundo em que há dor e sofrimento, ao mesmo tempo que a felicidade e os bons momentos podem ocorrer em meio ao mar de lama sem retorno a que estamos submetidos.

No fim, o drama do filme se transforma em uma guerra de narrativas, onde as duas versões principais são:

1. Olhe para cima! Tem um cometa vindo em nossa direção e precisamos fazer algo urgentemente.

2. Não olhe para cima! Não tem nada vindo em nossa direção e estão falando isso apenas para enganar vocês.

Fácil de escolher um lado, certo? E é exatamente aí que mora o perigo. Não é porque um lado é grotesco, hostil e desprezível que o outro se torna isento de qualquer responsabilidade. Por ora, ignoremos o segundo tópico, porque, se você continua lendo o texto mesmo depois da declaração de guerra contra o interesse do grande capital, você não seria o público que precisaria ser convencido de que, sim! Olhar para cima teria sido bom!

A campanha para olhar para cima se deu tardiamente, quando o cientista representado por DiCaprio reconheceu o perigo do seu posicionamento em defesa das empresas que queriam explorar o cometa e decidiu estar novamente ao lado do bom senso. Mas é esse ponto que precisa ser explorado. Se o interesse do capital for alimentado e dermos a ilusão à nossa ganância de que podemos ganhar com alguma opção, iremos agir em defesa dessa opção custe o que custar! Inclusive a nossa vida.

Não nos posicionaremos contra o cometa, porque há minérios que podem enriquecer o mundo e, sob a desculpa de acabar com a fome na África, poderemos enriquecer às custas de uma exploração nociva e arriscada.

Não nos posicionaremos contra o aquecimento global, porque o nosso estilo de vida segue confortável para a classe dominante e para a classe que acredita dominar algo. O discurso de exploração sustentável é lindo. Na prática, é igual defendermos que uma vida saudável se dê pelo equilíbrio: em uma refeição, comemos salada e tomamos suco. Na outra, uma degustação de frituras com Coca-Cola e um cigarro para terminar o dia.