O filme The Rocky Horror Picture Show, de 1975, é um musical que transcende gerações. Dirigido por Jim Sharman, o filme se tornou icônico pela união de comédia, terror, ficção científica, músicas e coreografias, maquiagens e figurinos excêntricos e muita sensualidade.
Antes de ir para as telas, o musical de Richard O’Brien – que toma o papel do mordomo Riff-Raff no filme – estreou em 1973 nos palcos de Londres com o nome The Rocky Horror Show. Ele ainda existe como peça que já foi performada em mais de 30 países – incluindo o Brasil! – e traduzida para mais de 20 línguas.
O longa já foi homenageado no filme “As Vantagens de Ser Invisível”, que também aborda, à sua própria maneira, a mensagem de celebrar o diferente. A série “Glee” também tem um episódio inteiro, de 2010, em homenagem ao musical. Outra produção que vale ser comentada é o remake de 2016, mas a ele falta charme e aprofundamento nas questões de gênero e sexualidade, então voltemos o foco para o original.
Na obra, acompanhamos um casal de recém-noivados, Brad e Janet. Após decidirem se casar, vão atrás do professor que ministrava a aula em que se conheceram para dar a notícia de que suas aulas formaram um belo casal. No entanto, no caminho para a casa dele, o carro dos dois quebra em uma tempestade, e o único lugar para pedir ajuda é um sinistro castelo.
Dentro do castelo, encontram um grupo bizarro de pessoas, lideradas por Dr. Frank-N-Furter, cujo nome é uma brincadeira que pode ser traduzida como “o Dr Frankenstein e mais” (further significa para além no inglês). Nessa noite, Frank convida o casal para ver o nascimento de sua mais recente criação: Rocky, um homem musculoso feito para satisfazê-lo.
O filme é algo entre uma paródia e uma homenagem a filmes de terror de ficção científica. Muito autoconsciente de seus pontos ridículos, o filme os explora ao máximo para criar uma experiência inesquecível para o espectador. Na primeira música dentro do castelo, por exemplo, Janet desmaia três vezes em cerca de cinco minutos.
Esse balanço entre o ridículo e o sério é o ponto central do filme, pois não só é o jeito que nós que estamos assistindo nos relacionamos com a obra, mas é o jeito que os personagens se relacionam entre si. Apesar de serem absolutamente exagerados em todas as características, cada um deles apresenta vulnerabilidades interessates e realísticas.
Um exemplo de cena que trabalha perfeitamente esse equilíbrio é a apresentação do Dr Frank-N-Furter. Quem deu a vida ao papel foi o genial Tim Curry, que você pode lembrar de papéis como o original palhaço “It” e o senhor das trevas de “A Lenda”. Curry não deixa nada fora da performance; cada pequena expressão, cada movimento na dança, o sotaque e o uso da voz, tudo é perfeitamente misterioso, sexual e intrigante. É absolutamente impossível olhar pra outra pessoa quando Frank está presente, e essa característica é essencial para a pontência da personagem.
A cena em que Frank é apresentado é perfeita por muitos motivos. Um dos principais é a revelação absolutamente repentina de sobre o que é o filme: se até aqui o espectador ainda estava boiando no contexto, a música Sweet Transvestite revela tudo, desde que o filme joga com sexualidade e gênero, até o plano de Frank e até mesmo o sub-plot alienígena – sim, você que não viu, alienígena. Planeta Transexual, galáxia Transilvania. Inclusive, se você não viu, acho que vale deixar o texto por aqui e voltar em, digamos, 1h40? Curtinho, né? Cuidado, spoilers pela frente!
Se no começo da música a revelação da roupa de Frank é tão repentina que pode causar risadas, até o final da performance você já questionou sua sexualidade umas três vezes. E esse jogo é o ridículo genial de The Rocky Horror Picture Show.
Para completar tal jogo, temos a atração crua entre os personagens. Ao mesmo tempo que Brad e Janet são risíveis para a turma de Frank-N-Furter, eles são carne nova. E o contrário é verdadeiro também: para o casal, as pessoas do castelo são criaturas bizarras, mas inexplicavelmente atraentes. Não só em termos sexuais, mas também uma atração de entendimento, de identificação e de permissão. Esse conceito é representado com um verso de Janet a respeito de Frank “sua luxúria é tão sincera“.
Analisando Brad, por exemplo. Um homem absolutamente submisso, beirando ser bobo, tentando sustentar um papel dominante para proteger a noiva, rápida e tranquilamente desestabilizado por Frank. Pois ele enxerga no doutor a permissão do prazer absoluto, que ele se nega com Janet, mas que deseja. Podemos pensar que por ter esse desejo, a pediu em casamento, mesmo sem parecer querer no começo do filme.
Já Janet não resiste tanto à sua curiosidade. Se no começo estava amedrontada, em pouquíssimo tempo já está em contato com suas vontades e prazeres. Encantada não só por Frank, mas por Rocky, a personagem tem até uma música inteiramente dedicada à descoberta do prazer, o que traz uma propriedade, confiança e liberdade sexual rara em personagens femininas da época.
A música Rose Tint my World talvez seja a que melhor representa esse equilíbrio e a complexidade de cada personagem. Meu verso favorito é justamente o de Brad, que percebe que tem a permissão não só ao prazer, mas a se sentir sexy, algo que nunca tinha sentido quando pressionado a se colocar como homem tradicional.
Como qualquer boa paródia, o filme é repleto de referências. A que eu acredito ser a mais válida de ser analisada é o contraste entre duas pinturas apresentadas: “American Gothic”, no começo, e “A Criação de Adão”, ao final.
“American Gothic” aparece quando Brad e Janet decidem se casar e quando chegam ao castelo. Inclusive, a representação da pintura na primeira cena é feita por Patricia Quinn (Magenta) e Riff-Raff (Richard O’Brien), e o padre é feito por Tim Curry, indicando que eles estavam destinados a destruir a vida tradicional, representada pelo quadro, que o casal levava.
Já “A Criação do Homem” está representada no fundo da piscina de Frank nas cenas finais, enquanto toca o icônico verso “não sonhe, seja”; passa a mensagem que a criação do ser humano passa pela possibilidade do prazer absoluto e da liberdade de identidade, representado por Frank boiando entre Adão e Deus.
Em suma, não é à toa que o filme é icônico para fãs de musical, de terror, de ficção científica e para a comunidade LGBT+. A respeito do impacto na comunidade, Richard O’Brien disse que o musical não foi criado para contribuir com discussões de gênero e sexualidade, mas que se sente gratificado de sua obra ter “ajudado outras pessoas a se sentirem menos isoladas ou solitárias”. O’Brien não coloca um nome na sua identidade de gênero própria.
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