Na cultura popular, constantemente a natureza humana é posta em xeque por seus predadores naturais.
Desde pequenos, somos expostos à realidade de que a dicotomia de valores entre o bem e o mal não parece fazer muito sentido. Vemos pessoas consideradas boas cometerem atos ruins e, ao mesmo tempo, “pessoas ruins” praticarem ações boas. De forma quase que natural, percebemos que os medos externos que tínhamos enquanto crianças, como dinossauros e tubarões, não fazem tanto sentido em um mundo adulto e maduro.
“A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo. E o mais antigo e mais forte de todos os medos é o medo do desconhecido.”
— H.P. Lovecraft
A existência do algo em detrimento do nada, no horror lovecraftiano, se dá por meio de deuses gigantes que são hostis ou, em sua grande maioria, indiferentes à humanidade. Ao colocar nossos medos em cheque, Lovecraft enfatiza a insignificância humana no âmbito cósmico, entregando-nos o posto de apenas uma raça em meio a um universo que sequer sabe ou saberá que existimos.
Apesar de suas controvérsias enquanto pessoa, um medo recorrente que o próprio Lovecraft expressava era o medo da tecnologia dos séculos XIX e XX; dos avanços científicos e filosóficos de sua época. Nyarlathotep, um de seus deuses mais malignos e icônicos, foi criado a partir de sua percepção sobre Nikola Tesla. As ideias e descobertas do físico pareciam tão aterrorizantes e ameaçadoras para o mundo que ele conhecia que seu terror ia além de ser apenas algo desconhecido – e esse é o ponto chave da questão. O medo de H.P. Lovecraft era, em última instância, um medo fundamental de ser entendido até aqui: o medo de que tudo que ele conhecia deixasse de ser o que era.
“Nem a morte, nem a fatalidade e nem a ansiedade podem causar o insuportável desespero que resulta de perder a própria identidade.”
— H.P. Lovecraft
Dando uns passos para trás, podemos voltar alguns séculos para chegar na frase favorita de todo estudante hobbesiano pós-moderno do ensino médio: “O homem é o lobo do próprio homem”. Clichê, sim. Mas não ultrapassada. E uma das provas da atualidade da reflexão proposta por Hobbes ao afirmar que somos os nossos próprios predadores está no seu uso intrínseco em filmes, séries, desenhos e contos contemporâneos.
Entrando no universo da animação japonesa Hunter x Hunter, em determinado arco, somos apresentados às criaturas conhecidas como “formigas quimera”. Para entender a comparação proposta, é válido explicar as semelhanças e diferenças que possuem para uma formiga normal. Igualmente às formigas que conhecemos, as formigas quimera vivem em colônia e em constante servidão à rainha, servindo ao propósito que coloca sua sobrevivência enquanto espécie acima de tudo. A diferença vem, portanto, na alimentação e na forma de reprodução. As formigas quimera se alimentam de outros seres vivos e se reproduzem através da fagogênese, o que significa que as formigas que nascerem terão as características do que tiver sido consumido pela rainha.
A partir do momento em que a formiga-rainha comeu uma criança e decidiu consumir mais pessoas, as suas crias começaram a desenvolver características humanas. Surgiu, assim, um conflito invisível interno nas próprias criaturas entre a genética-formiga e a genética-humana.
Enquanto o lado formiga prezava pela colônia e pelo coletivismo, o lado humano, com seus lapsos de memória e sentimentos, despertava em alguns o egoísmo e a vontade de ascender socialmente, enquanto outros começaram a sentir vontade de proteger aqueles que gostam ou lutar por justiça. Independente de se tornarem formigas “boas” ou “ruins”, no fim, o que estava sendo construído ali seria a ruína da coletividade da colônia: as formigas quimera estavam desenvolvendo identidade própria.
Enquanto espécie, o papel fundamental da rainha era dar a luz ao rei das formigas quimera; aquele que se tornaria o suprassumo da evolução e o ser perfeito. Nascendo de forma prematura, o rei, chamado Meruem, não conseguiu ouvir seu nome, pois a rainha morreu no parto.
“Esses seres humanos são realmente criaturas tolas.
Pensem um pouco com seus cérebros limitados e fracos e tentem se lembrar da pergunta que farei:
Vocês já pouparam a vida de um porco ou de uma vaca enquanto eles clamavam por suas vidas?”
— Meruem, rei das formigas quimera
Aqui, podemos retroceder alguns passos e relembrar o pensamento de Hobbes diante do fato de não termos predadores naturais. “O homem é o lobo do próprio homem”. Em Hunter x Hunter, a humanidade estava, pela primeira vez, diante de um predador natural. Um predador natural que se alimentava de seres humanos e não aparentava ter piedade com os nossos sentimentos.
“Quem sou eu? Por que estou aqui? Um rei sem nome, num castelo emprestado. Meus súditos são zangões irracionais. Se este foi o mandato do céu que me foi dado, eu temo… não, não temo nada. Exceto o tédio que isso tudo me trará.”
— Meruem, rei das formigas quimera
Uma coisa interessante que podemos perceber ao longo do anime é como os humanos se tornam monstros para derrotarem monstros que se tornaram humanos. A evolução dos protagonistas para personagens que não são necessariamente benevolentes é visível, ao mesmo tempo que o foco passa a ser, por diversas vezes, os conflitos internos que ocorrem na cabeça de Meruem – o rei, até então, sem nome, e nosso personagem mais importante nesse texto.
Uma grande reflexão presente no anime é o fato de nossa fortaleza e nossa fraqueza virem do mesmo lugar: da nossa humanidade. Um outro momento do rei das formigas quimera é importante para traçar esse paralelo.
Quem já viu Hunter x Hunter, possivelmente teve um estalo com a imagem acima. Quem não viu, talvez tenha se perguntado o que estava acontecendo nessa cena bizarra.
Meruem, em seu tédio e em sua busca pela compreensão da vida, desafiou todos os campeões mundiais de todos os jogos existentes, derrotando cada um após ler as regras por dez minutos. No fim, restava apenas um jogo de tabuleiro chamado Gungi, cuja campeã era a criança da imagem acima: Komugi. Frágil e cega, Komugi precisava que o rei lhe dissesse os movimentos que fazia para poder, então, mexer no tabuleiro e, mesmo assim, o rei não conseguiu derrotar a menina independente de quantas vezes jogava. Komugi intrigava o rei igual nunca antes ele havia se sentido, porque a cada partida que o rei jogava, ele compreendia mais do jogo na mesma intensidade que a menina ficava mais inalcançável.
“Por causa de Komugi, aprendi que a humanidade tem diferentes formas de força. No meu caminho até aqui, matei uma criança e essa criança poderia ter um talento para me superar em alguma coisa. Pisoteei essa semente por nenhuma razão.”
— Meruem
Durante o ataque dos protagonistas no castelo do rei, Komugi acaba por ser atingida e gravemente ferida. Tal ferimento fez com que o rei ficasse, pela primeira vez, comovido, e nem mesmo ele reconhecesse o que estava sentindo.
Ao perceber a comoção de Meruem, o seu desafiante, chamado Netero, sugere que eles se dirijam a algum local afastado do castelo, por entender que aquele sentimento de Meruem por Komugi era genuíno e merecia ser respeitado.
Antes da luta começar, Meruem externa que mudou de ideia sobre a execução completa dos seres humanos. De forma geral, o que o irritava era exatamente a individualidade humana, onde cada um possui identidade própria e luta por suas próprias causas.
“Na sociedade humana, limites territoriais demarcam territórios. Em um lado da fronteira, humanos morrem de fome. No outro, a escória boçal possui tudo o que precisa. Uma insanidade absoluta. Pretendo desmantelá-la e, por fim, criar um mundo tão justo que o próprio conceito de desigualdade há de ser esquecido.”
— Meruem
Netero é um daqueles que o rei gostaria de salvar, porém o humano não estava interessado em sua proposta. Os dois são personagens de alto valor filosófico para Hunter x Hunter, mas, por aqui, mantenhamo-nos focados à figura do rei.
Por querer poupar a vida de Netero, Meruem se recusa a lutar por diversas vezes, aceitando apenas quando sua curiosidade é atacada. Netero, que sabia como se chamava o rei, até então, sem nome, diz a Meruem que o contará seu nome caso ele (Netero) seja forçado a admitir sua derrota.
Quando tem sua perna e seu braço decepados, após uma luta unilateral a favor da formiga quimera, ocorre um movimento crucial para compreender a mudança de chave na concepção de Meruem sobre a natureza humana e a existência em si. Netero revela que, desde o começo, sabia que poderia e provavelmente iria morrer, então instalou em seu interior uma bomba altamente venenosa que explodiria assim que seu coração parasse de bater. A bomba em questão era uma bomba barata e de curto alcance, utilizada por ditaduras pequenas no universo de Hunter x Hunter.
“Meruem, rei das formigas. Você não compreende absolutamente nada. O potencial evolutivo humano é infinito .”
— Netero
Por mais anticlímax que possa ser Netero ter uma morte dessa forma, por meio de uma trapaça, é exatamente esse o ponto que o autor Togashi tenta trazer a tona. Uma curiosidade interessante sobre isso vem da própria frase destacada acima, em que não há um consenso nas traduções do japonês para o português. Segundo algumas fontes, a frase final é “o potencial evolutivo humano é infinito”. Segundo outras, Netero, a figura do bem, afirma que “o poder do ser humano para o mal é infinito.” Ambas as interpretações são complementares.
O mal pode ser utilizado para combater o mal, não alterando a percepção de que a natureza de Netero seja boa. Ou, então, o próprio conceito de bem e mal podem ser postos em xeque-mate. Voltemos à frase dita anteriormente, ainda nesse texto: humanos se transformam em monstros para derrotarem monstros que se transformam em humanos.
Para fechar a comparação, Meruem, que descobriu seu nome, sobrevive à explosão da bomba de Netero, mas fica com seus minutos contados, pois o foco principal da bomba não era a destruição instantânea, mas sim seus efeitos de contaminação venenosa (mais ou menos parecido com o efeito da radiação de uma bomba atômica, porém no curto prazo).
No fim, ao tomar conhecimento de seu nome e se lembrar de Komugi, ele não se comportava mais como o rei das formigas quimera, fazendo com que seu principal e mais astuto súdito reconhecesse a derrota. Meruem havia se tornado apenas Meruem. Meruem, que etimologicamente significa “a luz que tudo ilumina”, foi ofuscado pela luz de uma criança de saúde frágil e cega.
Somos seres que andam em bando e são difíceis de serem caçados. Somos nômades e nos adaptamos a distintas realidades, dificultando ainda mais o surgimento de um único predador natural para a nossa espécie. Ao que Hobbes soma essa situação à nossa natureza egoísta e conclui que queremos sempre nos destruir, tomo a liberdade de sugerir que, no fim, a nossa identidade nos impeça de sermos predadores de nós mesmos.
Nos identificarmos como seres humanos faz, em nossa mais profunda essência, com que sigamos os passos de Meruem em seu fim. O vilão dentro de nós é derrotado pelo amor de um lado humano que descobre o nosso nome e a nossa individualidade no mundo que nos cerca.
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