Um deles é um “cientista louco”, um pai e avô egocêntrico que viaja pelo multiverso com sua arma de portal, xinga bastante e abusa da bebida. A outra é uma “princesinha do pop americano”, semeada no country, empresária e protagonista de várias polêmicas na mídia. O que será que há em comum entre essas figuras tão divergentes? Na superfície, no nível mais óbvio, ambos são estadunidenses. Mas o que busco propor aqui é outra análise, olhando para o arquétipo que ambos assumem em algum momento das suas trajetórias: o do anti-herói. 

Sobre isso, é importante ressaltar a diferença mais significativa: enquanto Rick é 100% ficcional, Taylor Swift é uma pessoa real. Uma pessoa real que é uma figura pública, e, portanto, é nesse sentido que essa análise traz essa interpretação, considerando essa faceta que, certamente, não representa ela em toda a sua complexidade, mas serve para refletir tanto os aspectos propositais construídos como seus impactos.  

Nesse sentido, a cantora-compositora começou a trazer esse aspecto aos poucos, com relances na era “Bad Blood” e “Blank Space” até assumí-lo com convicção na era “Reputation” e de forma mais literal ainda no recente hit “Anti-Hero”, no qual seu eu-lírico se nomeia uma anti-heroína e discute diretamente o tema na música. 

É justamente dessa música que sai a inspiração para esse texto; porque ao ouvir trechos (traduzidos aqui do inglês) da música “Anti-Hero” como “Eu olho direto para o Sol, mas nunca para o espelho; deve ser exaustivo sempre torcer pelo anti-herói”, lembro de Rick e sua grande arrogância. Trechos como “Eu acordo gritando depois de sonhar que um dia vou te ver ir embora e a vida perderá todo o sentido (pela última vez)” lembram da dinâmica do Rick com sua família e amigos, especialmente com seu neto e companheiro de viagens Morty, vivendo num constante cabo de guerra entre individualismo em conjunto com sua vontade de se isolar e sua necessidade de ser acolhido e amado. Necessidade essa que ele mesmo se esforça em ocultar depois de uma vida cheia de traumas ligados a isso, mas cujas ações são constantemente desdenhosas das opiniões e mesmo do bem estar das pessoas ao seu redor.

E a autoconsciência na frase do refrão “sou eu, oi, eu sou o problema”, contempla a noção que ambos possuem e que demonstra o entendimento de cada um sobre a repercussão de seu comportamento nos outros, uma culpa que indica a existência de uma moral comprometida que os afeta emocionalmente e os separa, por exemplo, da figura mais caricata e vilanesca. 

O que é ser um anti-herói? 

Da esquerda para a direita: Hugh Jackman como Jean Valjean da adaptação de 2012; Byan Cranston como Walter White, considerado um dos maiores anti-heróis da TV contemporânea; e Joaquin Phoenix como Coringa no filme de 2019.

Essa conexão inesperada me fez refletir o fio condutor que conecta figuras tão contrastantes na maior parte das suas características, posto no título da própria música. Para isso, é útil relembrar o que é, primeiramente, um “herói”: uma pessoa admirada pelos seus feitos que contribuem para o coletivo, inspirando-o a agir de forma semelhante e servindo, muitas vezes, como molde para ideais que unem o povo a qual representa. É um arquétipo enraizado em diversas culturas pelo mundo, e dessa forma foi estudado e profundamente pesquisado por especialistas como Joseph Campbell, que, de milhares de mitos analisados por ele, propôs a Jornada do Herói em seu livro “O Herói de Mil Faces” (publicado em 1949). 

Portanto, em contraste ao arquétipo do herói, surge o “anti-herói”, cuja ascensão em popularidade pode ser percebida com mais precisão a partir do século XX, mesmo que haja personagens de épocas anteriores que são exemplos célebres desse arquétipo, como Jean Valjean, do clássico “Os Miseráveis”, do autor Victor Hugo (publicado em 1862). É justamente nesse momento de expansão da globalização, estabelecendo um mundo cada mais mais interconectado em suas diferenças e cada vez mais multipolar, com diversas ideologias conflitantes – democracia, autoritarismo, capitalismo, comunismo, nazismo, fascismo, monarquismo e muitas outras – coexistindo nos mesmos espaços e, por vezes, nas mesmas pessoas. Ele é, portanto, uma figura na qual essa contradição vive: faz tanto atos bons quanto ruins com frequência, ou mesmo atos cuja natureza é tão “cinzenta”, ambígua, que chega a ser difícil classificá-la.

Sobre a ascensão da popularidade da figura no anti-herói na cultura pop, Cyntia Calhado, pesquisadora e professora do curso de Cinema e Audiovisual da ESPM-SP, afirma: “atualmente, os anti-heróis estão mais presentes na cultura pop desconstruindo esse ideal do que seria uma pessoa perfeita, que não tem nenhum defeito e é um poço de virtudes, inclusive para aproximar o público desse tipo de música ou produto audiovisual”.

Semelhantemente, Adriana de Sá Moreira, professora do curso de cinema e audiovisual ESPM-SP, traz que o anti-herói é “inserido, dentro de um contexto onde ele não tem como seguir pelas leis da sociedade, pelas leis morais, vai perceber que se encontra sem opção”, e continua “isso com certeza consegue fazer a gente se identificar de alguma forma. Muitas vezes nos percebemos numa sociedade seguindo de maneira ética e moral e tendo surpresas desagradáveis ou represálias ou vendo pessoas cometendo atos imorais e antiéticos e que conseguem muitas vezes seus objetivos”, reflete. E continua  “e é nessa hora inclusive que o anti-herói vai se pautar na seguinte premissa: ‘se o bem comum estabelecido por todas as leis morais e éticas não consegue me contemplar, eu vou pensar em mim primeiro’. E essa é a lógica da construção do anti-herói: uma vez que o herói vai sempre colocar o bem comum acima de suas necessidades individuais, o anti-herói vai fazer justamente o contrário, ele vai colocar as suas necessidades individuais acima do coletivo”. 

Nesse sentido,  traz que “na dramaturgia seja clássica ou moderna se observam vários exemplos de como essa decisão de colocar suas necessidades acima do coletivo vão sendo colocadas e de forma que muitas vezes entendemos e quase que justificamos a atitude desse anti-herói, mas muitas a gente vai condenar”. Aponta que “a questão é que são personagens que são muitas vezes vítimas de um grande contexto que não está ali conseguindo garantir que esse bem comum seja materializado para todos, mas muitas vezes esses anti-heróis não vão ser vítimas da situação, mas escolhem, sim, colocar suas vontades individuais acima do coletivo”. 

Ambas, Sá Moreira e Calhado, trazem como exemplo do arquétipo o personagem Coringa, da versão do diretor Todd Philips (2019). A primeira afirma que ele é  um dos maiores anti-heróis da história do cinema recente é o Coringa, acrescentando “a gente identifica com ele porque no último filme ele trabalha, por exemplo, com questões psiquiátricas; vivemos numa sociedade que tem um problema grave em termos da profusão de casos de doenças psiquiátricas e eu sinto que os jovens se identificam muito com esse tipo de personagem que tem dificuldades”. E compara: “Não é aquele personagem idealizado do Super-Homem, por exemplo, que seria o grande arquétipo de herói sem nenhum tipo de questão, ele é perfeito; ele é forte, consegue vencer todos os desafios e mesmo que tenha alguma coisa que seja mais difícil ele consegue superar para, no fim, ser consagrado novamente como um grande herói”.

Em consonância, Sá Moreira argumenta que, nesse filme “há um anti-herói sendo construído ao passo que tem personagem que vai privilegiando as suas vontades individuais e que, na versão de Todd Philips (…), ele engrandece e abraça o caos e não sente nenhum remorso”.

Entendendo mais sobre o contexto e trajetória: Taylor Swift 

À esquerda Taylor em imagem de divulgação do seu primeiro álbum, em 2006, e à  direita Taylor, rodeada por cobras feitas em CGI no clipe de Look What You Made Me Do, em 2017.

Taylor começou ainda adolescente na indústria musical. Nessa época, sua música se encaixava no gênero country e sua ascensão foi marcada por uma imagem de “American darling” (queridinha da América), suave e doce. Conforme se tornava mais popular — e adentrava ao pop como seu gênero predominante —, a mídia tomou interesse por sua vida pessoal, especialmente pelas referências nas suas músicas aos seus relacionamentos com homens muitas vezes igualmente famosos, como Joe Jonas e John Mayer. E com isso, veio também o julgamento, não desconectado de percepções e expectativas retrógradas sobre mulheres em sociedade.

Eventualmente, outros tópicos envolveram sua imagem midiática, dessa vez num nível de negócios e relações na indústria musical: insatisfeita com a relação que serviços de streaming de música como o Spotify com os royalties retornados à artista, retirou seus álbuns da plataforma. Em consoante, fez críticas ao serviço equivalente oferecido pela Apple. Também houve uma controvérsia em relação a também cantora Katy Perry, anos depois resolvida, sobre a contratação de dançarinos que tinham em comum e que deu origem ao hit “Bad Blood” (e “Swish Swish” da Perry, em resposta).

Alguns anos depois, uma polêmica maior foi reacendida: Kanye West — músico que no VMA de 2009 subiu no palco para reclamar sobre a premiação de Taylor Swift na categoria de melhor clipe — expôs, em conjunto com sua esposa da época, Kim Kardashian, áudios que pareciam contradizer afirmações anteriores feitas por Taylor publicamente sobre uma música dele que referenciava ela. Isso gerou uma agitação no mundo virtual e midiático, com milhares de comentários negativos em relação a Swift, chamado no Twitter, na época, “Kim Exposed Taylor Party” (festa da Kim expôs a Taylor), acusando-a de agir com falsidade. Supõe-se que isso foi um grande motivo que a fez se retrair para uma fase de isolamento e introspecção no qual não se soube notícias dela por um tempo. 

Então, algum tempo depois, ocorreu uma virada marcante: o lançamento do seu álbum Reputation, com toda proposta musical e visual abraçando definitivamente uma era mais sombria, sarcástica e ácida. No hit principal dessa fase, “Look What You Made Do”, Taylor incorpora com grande ironia tanto verbal quanto visual referências a diversas polêmicas protagonizadas por ela ao longo dos anos, como o símbolo de cobra usado para se referenciar a ela na era do seu cancelamento relacionada à polêmica anteriormente mencionada do Kanye e Kim. Assim, em um trecho da música, afirma que a “velha Taylor não podia atender ao telefone porque ela estava morta”, demonstrando assim um ponto de virada marcante na sua trajetória narrativa e oficializando, para o público, essa mudança. Chega a reunir, com ajuda de efeitos especiais, variadas versões de si mesma com visuais simbólicos de cada era, brigando entre si, manifestando o conflito interno deste seu momento. Dessa forma, ela se apropriou de símbolos de um momento da sua vida que a machucou e os assumiu, transformando-os como parte da sua arte e produto.

Muita coisa mudou desde então, e, em 2022, a Taylor, que começou adolescente na indústria musical americana, lançou, já com 32 anos, a canção Anti-Hero, parte do álbum Midnights, seguindo uma tendência de músicas reflexivas. Essa música se tornou uma tendência sobretudo no Tik Tok, na qual os usuários dublavam o trecho do refrão “It’s me, hi, I’m the problem, it’s me” (“Sou eu, oi, eu sou o problema, sou eu”). 

E quem é Rick Sanchez? 

Criado por Justin Roiland e Dan Harmon (também conhecido pela série Community), Rick Sanchez é um personagem ficcional da série animada adulta Rick e Morty, lançada em 2013. Evitando entrar em detalhes que possam dar spoilers para quem ainda não viu, é identificável, desde o primeiro episódio, um comportamento imprudente em Rick, que inicialmente força por manipulação que seu neto, Morty, embarque com ele em aventuras intergaláticas e interdimensionais, colocando-o (e ao resto da família) em perigo constante, realçado pelo seu problema sério com alcoolismo. Por mais genial que seja demonstrado ser, na sua convivência com os outros, age de forma impulsiva e por vezes com pouca consideração pelo sentimento dos outros, questão essa que é levada para sua evolução ao longo das temporadas e explorada e revelada eventualmente em seus motivos. 

Sobre a inspiração para ele, Roiland afirma que se inspirou no Doc Brown, personagem do clássico “De Volta Ao Futuro”(1985), assim como o seu parceiro de viagens, Morty, é inspirado no protagonista Marty McFly; tendo a proposta de ser uma versão mais ácida desse duo. 

Atualmente, é considerado um dos personagens mais populares da cultura pop atual, rendendo muitos acordos de licenciamentos para produtos relacionados à série e uma renovação de longo prazo (de mais quatro temporadas), anunciada com o lançamento da sua sexta temporada em 2022.

A tendência, em perspectiva 

Mas o que isso indica sobre a sociedade em que vivemos?

Em relação ao tema, a professora Adriana Sá Moreira declara que os anti-heróis “são personagens que (…) conseguem conversar conosco, com a nossa sensação de muitas vezes injustiça, de impotência, e encontramos um alívio nesses personagens, mesmo que pelos motivos equivocados, imorais e antiéticos, de uma força ali que eles conseguem encontrar”. No entanto, expressa que “ao mesmo tempo, eu às vezes fico muito preocupada porque a sociedade inclusive está muito não só criando esses personagens, mas tendo eles sempre muito lembrados e muitas vezes louvados”. Assim, complementa que “mesmo (..) que a gente entenda suas ações como seres humanos que são, como muitas vezes vítimas da situação ou mesmo pessoas não têm todas as respostas, não têm todos os conhecimentos para tomar as decisões éticas e morais, mas que, ainda que eles sejam muitas vezes louvados por isso, quando a ainda assim deveríamos cada vez mais, apesar de todo o caos da nossa sociedade contemporânea, apesar de todas as nossas dúvidas e incertezas, (…) ainda tentar encontrar o caminho que possa nos trazer aproximação do outro, a relação com o coletivo que permita que todos estejam contemplados e não somente as nossas necessidades individuais”.

Isso ressoa a uma crítica feita a obras do gênero true crime, sobretudo audiovisuais, que retratam serial-killers dentro dessa figura do anti-herói, por vezes, segundo críticos como canal especializado The Take, gerando idealização e mesmo idolatração dessas figuras problemáticas com origem e impacto real. 

Para essa e outras questões levantadas pelo tema, não há respostas definitivas, mas há sempre, o incentivo ao debate e reflexão.