Fruto de uma construção instável, o atual cinema brasileiro está finalmente desenvolvendo uma identidade condizente com o papel da sétima arte em países de terceiro mundo. Mesmo que à passos curtos, o conteúdo denunciador e expositivo de problemas sociais (muitas vezes velados) felizmente não ficou restrito ao Cinema Novo ou ao Cinema da Boca do Lixo.

Diferente dos precursores do Terceiro Cinema, novas produções apostam no realismo e tangibilidade dos acontecimentos em detrimento da complexidade dos temas trabalhados até então, o que fora mal interpretado ou não entendido pelo público interno da época. Filmes como O Som ao Redor, Aquarius (Kléber Mendonça Filho, 2012; 2016), Rifle (Davi Pretto, 2014), Que Horas Ela Volta? e Mãe Só Há Uma (Anna Muylaert, 2015; 2016) abrem mão da denúncia crua da pobreza e abraçam a inclusão, de modo a tratar dos reflexos da construção histórica brasileira na vida contemporânea.

É admirável a sensibilidade desses diretores para a leitura das diversas identidades culturais no Brasil e junto aos nomes citados, também é de destaque o papel de Laís Bodansky (Bicho de Sete Cabeças, As Melhores Coisas do Mundo), agora estreando Como Nossos Pais, vencedor de todos os prêmios para os quais foi indicado no Festival de Gramado (Melhor filme, direção, montagem, ator, atriz e atriz coadjuvante).

Rosa (Maria Ribeiro) é mãe de duas meninas, esposa, filha de dois intelectuais divorciados da classe média-alta paulistana e sustenta a casa com o emprego apático que substituiu seu sonho de ser dramaturga. Os questionamentos de sua vida começam em um almoço na casa de sua mãe Clarice (Clarice Abujamra), no qual ela revela abruptamente ter concebido-a durante um congresso em Cuba, longe de seu pai de criação. Sem poder contar com o companheirismo do marido (Paulo Vilhena) e em meio às pressões de uma mãe, filha e esposa que deseja ser perfeita em todos os sentidos, a revelação feita por sua mãe servirá de motor para que Rosa questione as relações hereditárias, o papel da mulher moderna nelas, a construção histórica do modelo familiar patriarcal e a super dedicação das mulheres em prol da própria felicidade.

Os papéis de cada personagem são muito bem definidos, suas percepções da sociedade e como cada uma cruza com a visão “careta” de Rosa, muitas vezes até mais tradicional do que a própria mãe. Todo o cunho de desconstrução presente no filme é permeado sutilmente pela carga emocional carregada pelo longa: a música de Belchior (maravilhosamente regravada por Elis Regina) que dá título à obra guia com maestria a relação entre as personagens, pincelando as pequenas ações de Rosa que se assemelham à mãe; as questões extraconjugais e a áurea inexplicável por trás das gerações.

“Essa mulher contemporânea espremida entre duas gerações é uma fase muito única da vida. Ela é filha, mas já formou família, tem seus filhos, então também é mãe. Só que às vezes ela vira a mãe da mãe dela ou a filha das filhas. É uma confusão de papéis, e a vida é assim. A mulher quer ser todas essas, mas de uma forma perfeita, o que é impossível. O que é gostoso de ser mulher hoje em dia é que ela sabe que é impossível, e a gente não tem mais vergonha de dizer isso”, disse Laís em uma entrevista para a Carta Capital.

Ao final, Como Nossos Pais se revela um filme essencial, um manifesto necessário como espelho para as mulheres que se esquecem (ou não tem tempo) de olhar para si e importante para que homens revejam até as menores atitudes que corroboram com o patriarcalismo, mesmo que indiretamente. Com atuações memoráveis (principalmente por parte de Maria e Clarice) e direção precisa, Como Nossos Pais é um filme sensível sem ser forçado, forte sem ser agressivo e usa maravilhosamente do cinema como um espaço de fala essencial. Como disse a própria diretora, é hora de usar desse espaço para dizer coisas que precisam ser ditas.

Crítico mirim, desenhista amador, escritor júnior e futuro diretor (se tudo der certo).