Imagine uma cena em que um pai ou uma mãe conversa com o filho sobre a escolha da faculdade que pretende cursar.
A conversa começa bem. O pai/mãe diz: “Eu quero o melhor para você”. A isto o filho ou filha responde: “Que bom! Eu também quero o melhor para mim.”.
Seria bom que a conversa terminasse por aí, mas não. Segue-se o embate sobre a definição do que “é bom”.
O pai pode dizer algo como: “Eu sei o que é melhor para você; sou mais experiente e vivido. Sei de dificuldades que você ainda nem suspeita. Conheço os cursos com as melhores condições de empregabilidade”.
É provável que este pai tenha se esforçado para bancar os estudos do filho e saiba que ainda o fará por algum tempo; com sua experiência, é também provável que tenha se desencantado relativamente com o mundo e aprendido a negociar seus sonhos ante a realidade.
Isto o leva tanto a querer que o filho tenha uma escolha mais pragmática quanto a querer tentar preservá-lo dos mesmos desencantos. Muitas pessoas consideram que tiveram que se dobrar a realidade e renunciar a muitos dos próprios sonhos, inclusive por ter a responsabilidade de cuidar de filhos. Mas com o filho não! Se nós “caímos na vida”, ele parece ser algo como uma reserva ecológica vital, que devemos proteger e preservar.
Quando este filho, no entanto, ergue sua voz e apresenta seus próprios projetos, em desacordo com o dos pais – ou seja, quando ele se apresenta como um indivíduo, e não como um filho – as diferenças inevitavelmente aparecem. Vou deixar a perspectiva do filho para um próximo texto; aqui, vou me concentrar na perspectiva caricata do pai.
As diferenças entre os projetos do filho tendem a ser compreendidos pelos pais como erros, falhas em sua avaliação, ingenuidade. Com a adolescência em curso, provavelmente o jovem já não mantem a mesma proximidade e intimidade, mais comuns na infância. Mais do que isto, em seu processo de auto-afirmação, ele tende a negar todos os valores dos pais e se posicionar sistematicamente como diferente. Os pais costumam viver este momento com um sentimento de abandono – “ele não me ama mais” – e traduzem o medo da perda sob a forma de outros medos: das companhias, do perigo da rua, das escolhas mal feitas por imaturidade.
Esta diferença essencial na emancipação dos filhos à condição de sujeitos precisa ser operada, sob pena de se manter uma filho tutelado que não se alça à condição de adulto. Há quem consiga fazer isto de forma sutil, há quem vá para o confronto e ruptura.
De toda a maneira, o enunciado que nomeia este texto é recorrente por parte dos pais: “Não foi isto que eu sonhei para você”. Pelo desenvolvimento anterior, acho que já pode ter ficado claro algo inusitado: aquele enunciado sugere que as coisas estão seguindo seu curso.
Um dia, os pais sonharam com seus filhos; aliás, sonharam tê-los, como seriam, o que viriam a fazer da vida. O fonte primordial destes sonhos são nossos próprios ideais não realizados. Esperamos que nossos filhos sigam aqueles nossos passos de que gostamos (“Ele vai voltar e assumir a firma da família, tomar meu lugar no escritório ou consultório) mas, sobretudo, esperamos que reparem as falhas e feridas que sofremos (“Ele não vai passar pelo que eu passei e terá oportunidade que não tive”).
A escolha do nome, o enfeite na porta do quarto na maternidade, a decoração do quarto em casa, as roupas, escolas e tanta coisa que consumimos; tudo isto nos conta muitos dos nossos sonhos com nossos filhos.
Só faltou combinar com o adversário. E quando ele se manifesta se afirmando contra os pais e formulando desejos próprios, a frustração é inevitável. A diferença entre os nossos ideais e a realidade costuma ser chamada de “defeito”.
Mas, uma vez mais, é só quando o filho sai do campo sonhado pelos pais que ele tem a oportunidade de se tornar um sujeito. É na diferença que ele se constitui como indivíduo. Impõe-se aos pais o trabalho de luto por mais este grau de separação.
Por vezes, os filhos acabam realizando, não os sonhos sonhados, mas os desejos inconscientes dos pais que a eles subjazem. Quando isto acontece, os pais ainda se defrontam com esta imagem ampliada de si mesmos em seus filhos, justamente naquilo que repudiam em si. Dureza.
Por fim, sabemos também que, uma vez operada a autoafirmação (que tem sido adiada cada vez mais em nossa cultura), é também comum que os filhos se reencontrem com seus pais e se reconciliem com seus valores anteriores.
A tensão entre sermos iguais a nossos pais e diferente deles pode ser figurada como uma espiral. Através de gerações, pessoas repetem dinâmicas familiares sem sequer se darem conta. Ao mesmo tempo, cada novo processo de amadurecimento que se cumpre introduz diferenças. A imagem da espiral atende à ideia de que certos pontos são reiteradamente repetidos mas, quando tudo vai bem, de forma diferenciada, em planos mais amplos.
A tarefa dos pais nesta extensa zona de fronteira entre a infância e a vida adulta que se chama adolescência e passa pelo vestíbular é bastante dura: sustentar em vários sentidos (financeiro, afetivo) e, muitas vezes, sem entender ou ter controle sobre o destino das crias.
Pedro de Santi
Psicanalista, doutor em psicologia clínica e mestre em filosofia. Professor e Líder da área de Comunicação e Artes da ESPM.