“No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.”

Os últimos meses do ano foram marcados por grandes perdas na Cultura e na Arte, mas a ausência que mais me tocou foi a morte do poeta Manoel de Barros, cujos escritos descobri na minha graduação em Letras na PUC-SP. Nunca mais fui o mesmo: o poeta do silêncio e do nada vive em mim.

A poesia é o silêncio que se diz em palavras, sendo a problemática da incomunicabilidade uma tentação para os poetas, pelo menos para os bons e raros, aqueles que questionam o próprio trabalho e seu ofício em dizer o indizível. Cabe nos perguntar: Que será o indizível? Será o silêncio? Aquilo que as palavras não dizem? Mas se as palavras são sinais sonoros de alguma coisa que está no interior dos homens, o que será esse “alguma coisa”? O verdadeiro poeta é aquele que tenta aprisionar esta alguma coisa que “raras vezes a forma revela, o que, sem evidência, vive”. Neste jogo de interrogações entre o velar e o revelar vive a (verdadeira) poesia.

Manoel de Barros pode ser considerado o poeta do nada e do silêncio. Seus escritos apontam para o desejo de apreensão de um mundo construído sobre ruínas, restos, ciscos e coisas sem importância, corroendo os limites que separam a poesia da prosa. Um de seus livros que mais cultuo é “Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo” que já traz no título suas/nossas eternas dúvidas: o que separa o grande do pequeno, a razão da emoção, a ciência da arte? Desses questionamentos aflora um eu lírico que seduz o leitor, graças à mestria do poeta em “brincar” com as palavras, tentando encontrar o equilíbrio sonoro entre elas:

“A poesia está guardada nas palavras – e é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
Insignificâncias (do mundo e as nossas).”

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O caminho percorrido por Manoel de Barros é, na verdade, um descaminho percorrido por incertezas e que encontra na própria linguagem a sua fiel aliada, banhando de lirismo a racionalidade. Ao fazer poesia acaba por criar quase que um tratado sobre a sua poética: “Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu.”

Manoel de Barros possuía o dom de transformar o ínfimo, o pequeno, em poesia, transformava o mundo dos seres, aparentemente, insignificantes em linguagem. Em seus pequenos poemas encontramos a grandeza do sublime (o poeta também adorava desenhar):

Eternidade
é a palavra
encostada em
Deus.

Palavras
gosto de brincar com elas.
Tenho preguiça de ser sério.

Poeta
É uma pessoa
Que reverdece nele mesmo.

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Para matar a saudade de Manoel de Barros, recomendo o documentário “Só Dez Por Cento é Mentira” dirigido por Pedro Cezar, um original mergulho cinematográfico na biografia “inventada” e nas criações do poeta; alternando sequências de entrevistas, versos de sua obra e depoimentos de “leitores contagiados” por sua literatura o filme constrói um painel revelador da linguagem deste singular artista, considerado pela crítica literária o mais inovador em língua portuguesa. Bom lembrar que o filme ultrapassa as fronteiras convencionais do registro documental, utilizando uma linguagem visual instigante e criando uma dramaturgia alusiva ao universo simbólico do poeta.

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Enveredar pelos labirintos líricos construídos por Manoel de Barros é um aprendizado intraduzível em palavras. O poeta vive em seu silêncio:

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
Fatigadas de informar.

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E agora
Que fazer
Com esta manhã desabrochada a pássaros?

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João Carlos Gonçalves (Joca)

Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

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