Ser quem você é.

Por definição, a palavra “ser” já é complexa por natureza. Tem a ver com identidade, alguma particularidade ou um conjunto de características que alguma coisa possui. Quando aplicada ao indivíduo, então, piorou. Saber quem somos só não é mais complicado do que sabermos quem queremos ser.

No especial Tom & Jerry e o Quebra-Nozes, Jerry, anualmente, assistia ao ballet de Tchaikovsky, “Quebra-Nozes”, nas suas exibições natalinas. Em todo Natal ele estava lá, escondido no canto do teatro, assistindo, vibrando e se emocionando, enquanto, na verdade, queria mesmo era estar no palco.

Quando a peça deste ano acaba, Jerry aplaude e vai ao palco tentar dançar, quando todos já foram embora, mas, à medida que cai, derruba um brinquedo que estava no palco e quebra um enfeite, lembrando-se que não possuía o dom da dança, mesmo depois de dar o seu melhor.

Tudo o que ele queria era saber dançar e, magicamente, cai sobre ele uma frágil magia, que lhe confere habilidades de dançarino. Para ser um verdadeiro bailarino, os brinquedos também ganham vida, pois Jerry precisaria de companhia e de plateia, e, à medida em que a magia foi afetando toda a região, cenários surgiram e os gatos de rua, que estavam nos bastidores procurando restos de comida, também foram afetados.

Jerry, que não acreditava no seu potencial, havia vislumbrado que seu sonho poderia se tornar realidade e viu tudo à sua volta mudar porque, mesmo com a magia, tudo só aconteceu devido a toda a sua vontade e persistência. Como diria o velho Nietzsche;

“Demore o tempo que for para encontrar o que você quer da vida, mas, depois de encontrar, não recue ante nenhum pretexto, porque o mundo tentará te dissuadir.”

Jerry, que havia acabado de se encontrar, não deveria, em momento algum, abrir mão de seu sonho, porque, traduzindo o final da fala de Nietzsche, sempre vai ter muita gente tentando te fuder – e tinha.

Os gatos, que também haviam sido afetados pela magia, foram atrás de Jerry e dos brinquedos, pois queriam dominar o local e se tornarem os reis daquele reino mágico. Com o decorrer da cena, Tom captura os outros brinquedos, enquanto Jerry, Paulie (uma decoração de árvore de Natal) e Nelly (uma égua de brinquedo que falava apenas se sua cordinha fosse puxada) foram atirados para longe, sendo transportados para outro cenário, cheio de neve e distante de tudo.

Os três, que não desistiram e passaram por tudo à sua frente, estavam destinados a encontrar ‘o criador de brinquedos’, pois ele poderia ajudá-los a retomar o Reino dos gatos. Em uma aventura mágica, eles atravessam todos os cenários colocados à sua frente, seguindo a estrela-guia, até chegar ao seu objetivo – tudo isso ao som de Tchaikovsky.

Quando chegam lá, o criador de brinquedos – que é o narrador da história – conserta Paulie, que havia sido desfeito, e dá a Jerry a chave para combater os gatos. No caso, literalmente uma chave.

“Esse é o desejo do monsieur Jerry. Tudo que ele queria era dançar e esse Reino surgiu do desejo dele. Temos que respeitar seus sonhos, não?” – Tuffy, o ratinho

Aqui, antes de deixarmos Tom e Jerry um pouco de lado, vamos olhar por outra perspectiva o que aconteceu. Jerry, que possuía um sonho, decidiu acreditar que era possível realizá-lo: foi atrás, enfrentou adversidades e se viu diante de várias situações que lhe mostravam como desistir era a opção mais fácil.

Mesmo assim, foi atrás da estrela (que representa a sua esperança), enfrentou os gatos no meio do caminho e confiou nos companheiros que estavam ao seu lado. Quando chegou ao seu objetivo (o criador de brinquedos), recebeu uma chave como a salvação de seus problemas. Ou seja: recebeu o recado de que até existirão pessoas ao seu lado, mas, no fim, quem pode te guiar e abrir caminhos para você sempre será você mesmo. Você recebe a chave, o que faz com ela é outra história.

“Inspiração é um convidado que não visita de bom grado o preguiçoso.” – Tchaikovsky

No ballet original do Quebra-Nozes, composto por Piotr Ilitch Tchaikovsky em 1892, a personagem Clara estava em sua casa, esperando os presentes de Natal, quando seu padrinho chega para animar a cerimônia com um teatro, dando presentes e mantendo as outras crianças entretidas. Para os meninos, ele dá vários presentes especiais, mas Clara recebe algo mais único: um quebra-nozes – ao qual ela fica totalmente entretida.

Durante a noite, após o irmão da menina quebrar o presente que o padrinho havia dado para ela, ele conserta o quebra-nozes, dando-lhe novamente para Clara – que dorme abraçada com ele.

A magia acontece quando acorda, no meio da noite, e percebe que o quebra-nozes havia ganhado vida e estava liderando uma guerra, junto aos outros soldados, contra o exército de ratos que estava querendo invadir sua casa. Ao final do confronto, com vitória dos brinquedos, Clara vê que o quebra-nozes foi ferido e corre para curá-lo, seguindo também por uma aventura mágica e passando por diferentes cenários.

O auge da peça vem com as coreografias de Lev Ivanov, como ‘Flocos de Neve’ no reino das neves e, mais tarde, a ‘Valsa das Flores’, no reino dos doces. Em cada cena, percebe-se como Clara, por causa da magia, conseguia seguir pelos caminhos que queria e se encontrava cada vez mais no ballet.

A última cena da peça começa com a protagonista dançando com todos os outros personagens, à medida em que eles vão ficando cada vez mais longe, mais longe, mais longe… Até que desaparecem e a menina acorda no chão da sala, sem saber se aquilo tudo havia acontecido pela mágica do seu padrinho ou se era só um sonho.

Em Tom & Jerry, o desfecho do filme nos traz a cena do pequeno rato utilizando a chave para montar um exército de quebra-nozes de brinquedo, que marchou durante todo o amanhecer e expulsou, ao lado de Jerry e dos brinquedos, os gatos do reino mágico que havia sido feito. Sem os gatos, Jerry, a bailarina e os demais brinquedos dançaram em um ballet, enquanto a cortina do teatro abaixava e, na plateia, o criador de brinquedos aplaudia a peça em que o ratinho havia feito parte.

Seja por conta da magia ou da perseverança, os sonhos de Jerry e de Clara foram alcançados. Ele queria dançar, ela queria viver aventuras e os dois focaram naquilo que queriam, não se apegando no recado que o mundo lhes dava: desista!

Independentemente do que parecia mais provável, ambos acreditaram naquela voz, que lá de dentro parecia falar para eles não se apegarem ao que era dito, pelos outros e por eles mesmos. De forma mais específica, quando queremos nos encontrar, não podemos ouvir só o nosso lado racional e probabilístico – ele não nos levará além de onde já estamos.

Jerry sentiu que dançar era para ele, mesmo parecendo impossível. Todo Natal ele ia atrás e todo Natal dava errado. O que ele fez com isso? Tentou mais uma vez. A magia foi consequência de ter acreditado que dava. Poderia não acontecer nada? Poderia. Mas, se ele não tivesse tentado, “não acontecer nada” não seria uma possibilidade. Seria uma regra.

Sintetizando as duas histórias, um exemplo real de alguém que se tornou o que sonhou ser é o patinador artístico japonês Yuzuru Hanyu.

Ainda em atividade, aos 27 anos, Yuzuru, que bateu recordes mundiais inúmeras vezes e conquistou todos os títulos que poderia (nacional e internacionalmente), é visto não só como o multicampeão que ele é. Yuzuru coloca a alma e vive cada passo, salto e sequência realizada em seus programas.

Recentemente, tem sido notícia porque, mesmo machucado, seu objetivo tem sido realizar o 4 Axel, um salto nunca realizado por ninguém, por tamanho risco e dificuldade. Neste salto, o patinador gira 4,5 vezes em torno do seu próprio eixo no ar.

“O 4A é muito arriscado. Na verdade, não tenho confiança no meu pouso. Eu sonhei em aterrissar, sonhei com o sucesso quando eu era muito pequeno, então eu quero muito conseguir o sonho para o meu menino.”

Se formos colocar apenas o lado racional em jogo, por que ele tentaria tanto fazer o 4A? Yuzuru já foi campeão de tudo que competiu sem ele. Já entrou para os livros como o maior patinador da atualidade e, para muitos, da História.

Por que continuar tentando, em treinos e competições oficiais, se ainda não conseguiu executar o 4 Axel de forma perfeita? O que o motiva tanto?

“E sobre motivação: meu eu de 9 anos sempre me diz para saltar, mas sinto que dessa vez ele me elogiou, me tornei um com ele. Muitas pessoas não devem ter percebido, mas minha forma é a mesma. Quando eu comecei a treinar o 4A, quando eu tentei escalar essa parede, a pessoa no topo era o meu eu de 9 anos. Eu segurei sua mão e ele me puxou. Pensei “Isso que é um axel de Yuzuru Hanyu”.

Contando algumas histórias nas minhas próprias contradições.