“Somos assim. Sonhamos o voo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o voo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Os homens querem voar, mas temem o vazio. Não podem viver sem certezas. Por isso trocam o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.”
(Rubem Alves)

Dédalo fica preso com seu filho Ícaro no labirinto. Olha para o céu azul imenso e decide imitar aqueles que, simbolicamente, representam a Liberdade: os pássaros. Juntos começam a construir com penas e cera as asas que os farão voar. O pai avisa o filho para não voar muito alto e ter cuidado para não chegar perto do Sol, mas Ícaro, fascinado pela grandeza do espaço infinito, voa cada vez mais alto. Um homem que sonhava voar e ultrapassar a sua condição de humano, acaba por se aproximar demais do Astro Rei (da luz, do conhecimento) e seu desejo de liberdade e conquista o leva a morte.

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Voar como metáfora da procura, da descoberta, da inquietação. O homem pode voar, mas num limite provável, nos ensina a mitologia. Vejo Ícaro como alegoria da imagem do Artista que desafia o provável e se alimenta do desejo, do desvio e voa em busca do inesperado.

Toda esta reflexão me veio após assistir ao espetáculo “A Gaivota de Anton Tchekhov”, apresentado dentro da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Escrita em 1896, a peça apresenta diálogos aparentemente triviais entre personagens que vivem uma vida banal, porém interrompidas constantemente por reflexões sobre a arte e a função do artista: no centro da narrativa temos duas atrizes de formações diferentes e um escritor em crise criativa.

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Nesta montagem do diretor russo Yuri Butusov, a instabilidade dos personagens é a instabilidade dos artistas em meio às crises e acaba sendo a instabilidade de todos nós, seres humanos com medo de voar. Emocionante perceber como os atores do espetáculo parecem aves, quer seja pela violência cênica de seus movimentos, quer seja pela entrega total ao inesperado e ao risco; impossível descrever o impacto do que é visto em cena. O diretor e seus magníficos atores nos expõem à nossa própria solidão diante do voar caótico do momento político-social que vivemos (A Rússia é o Brasil?).

Enquanto aprendemos a voar ou a perder o medo de, nos resta as artes e o teatro como metáfora da viagem alada do homem diante do desconhecido. O espetáculo me remeteu ao filme “Birdman (A Inesperada Virtude da Ignorância)” de Alejandro Gonzáles Iñarritu que também apresenta um artista em crise que assume (literalmente) o papel de um Ícaro Pós-Moderno.

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O olhar azulado da filha mirando o céu infinito no final do filme nos convida a mudar de direção e encarar nossa própria fragilidade diante de um aqui e agora esfacelado e violento.

Uma pergunta final e inquietante: O que será do ser humano se, incapazes de realizar seus sonhos, perderem com ele a Liberdade ou o Desejo de Voar?

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João Carlos Gonçalves (Joca)

Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

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