No universo poético do cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-2007) vida e obra se confundem. Suas criações se fazem compreender numa linguagem cifrada e silenciosa que contorna as palavras; imagens ganham vida e convidam seus espectadores a decifrá-las: “Com o cinema, de repente, tinha a oportunidade de me comunicar com o mundo a minha volta numa linguagem que literalmente fala da alma em frases que fogem do controle do intelecto de forma quase voluptuosa.”
Para Jean-Luc Godard, Ingmar Bergman é o cineasta do instante, pois cada um de seus filmes nasce de uma reflexão dos personagens sobre o momento presente, aprofundando tal reflexão por uma espécie de esquartejamento da duração, um pouco ao modo de Marcel Proust. Parece que o cineasta narra no presente para buscar um tempo perdido em um passado carregado de memórias afetivas.
“Gritos e Sussurros”, uma das criações mais emblemáticas de Bergman, sendo, segundo muitos críticos, o filme que condensa toda a sua enorme e extraordinária obra, acaba de estrear no Cine Sesc em versão restaurada, valorizando as cores e a fotografia desta obra-prima.
O evento é uma comemoração das mais de quatro décadas da estréia do filme no Festival de Cannes. Bergman tinha 64 anos quando fez “Gritos e Sussurros”, cercando-se de colaboradores afetivos: as atrizes Liv Ullman, Ingrid Thulin, Harriet Anderson e o fotógrafo Sken Nykvist. O filme mergulha de forma poética e desconcertante na alma feminina. Em um tempo ambíguo e cronologicamente difuso (talvez final do século 19), três irmãs e uma criada habitam uma, também enigmática, casa no campo, velando e cuidando de uma das irmãs que está morrendo. Nesse espaço, aparentemente denso e claustrofóbico, o universo feminino traz para a cena lembranças e manifestações de afeto, ódio e desejo. Tudo embalado com a magnífica fotografia em vermelho, premiada com o Oscar.
Cenas belas, intensas (como a da empregada que embalada a irmã doente, numa espécie de Pietá feminina) e chocantes (como a da irmã que, para agredir e punir o marido e a si mesma, acaba cortando a própria genitália com um caco de vidro), comprovam que o filme não envelheceu e continua um clássico do cinema de autor, como explica Bergman: “O único gesto que realmente vale a pena é o que estabelece contacto, o que comunica, o que sacode a passividade e a indiferença das pessoas.”
Estamos diante de uma obra que nos convida a reflexão, um sonho-pesadelo pintado com as cores enigmáticas do desejo e do feminino. Assim, camadas e camadas de sentido transbordam do filme, o que nos faz perguntar: Qual é o tema do filme? Do quê ele trata? Qual a sua “Mensagem”? O próprio criador nos avisa: “Eu mesmo não estou certo de compreender inteiramente o filme. É a mesma coisa com todos os sonhos. Falo muitas vezes como Stravinsky: nunca compreendi uma obra de arte, somente a vivi – para mim é um grande consolo.”
Bergman faleceu há oito anos, mas seu olhar sobre a fragilidade humana continua vivo em suas obras que permanecem de forma duradoura e enigmática em nossa memória. Assistimos aos seus filmes com um sentimento de vertigem a nosso próprio desconhecimento de nós mesmos. “Gritos e Sussuros” é a síntese da visão poética e estética de Bergman: é um filme que se desenvolve, ali onde geralmente o cinema não tem acesso; um filme como um sopro, que passa, nos impregna com a força de suas imagens e sons, sem que possamos identificar ao certo a origem de sua graça e mistério; desaparece sem alarde, deixando o nosso universo transformado: a isso chamamos obra de arte.
João Carlos Gonçalves (Joca)
Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.
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