No primeiro episódio da série Sandman (Netflix), o Sonho é capturado e se senta nu em sua prisão, onde fica, imóvel, até o recurso narrativo do corte temporal: “100 anos depois”, ele percebe uma oportunidade, se move e foge. Obras audiovisuais sempre utilizam o recurso do corte temporal para representar períodos em que não acontecem mudanças.
Imagine se a série representasse, em tempo real, os 100 anos de Sonho sentado imóvel. Tedioso, não? E você já pensou que sua vida tem mais momentos em que nada acontece que momentos de mudança?
Talvez esteja aí uma dificuldade de obras audiovisuais: representar o tédio ou o dia-a-dia. Existem obras que representam o tédio. Em geral, dramas existencialistas. Mas essas obras nos representam? Será que a maioria da população vive um drama existencialista ou, simplesmente, mudanças levam tempo para acontecer? Ou nem acontecem.
O entretenimento é reconhecido como um território de escapismo. Muitas pessoas buscam em narrativas ficcionais uma fuga ou um momento de distanciamento de sua realidade. Aventura, drama, suspense alimentam sua imaginação e fazem com que esqueça seu dia-a-dia. As narrativas utilizam do recurso de cortes temporais para representar passagens de uma situação para momentos de mudança: começam no que seria a situação cotidiana até que acontece uma mudança e, depois, mais cortes para novos momentos de mudança. Sem cortes temporais, tenderiam a se tornar maçantes e entediantes.
Seria o maçante a representação do real?
A famosa Jornada do Herói, baseada na obra de Joseph Campbell, demonstra uma estrutura de narrativa que se inicia com a interrupção do cotidiano do protagonista pelo chamado à aventura. Já começa pela interrupção do tempo de espera. Na realidade, frequentemente, a espera se estende.
Por fim, é duro admitir, mas o filme que tentou representar uma vida real com cortes temporais foi Click, de Adam Sandler (náusea). No filme, o protagonista acelera momentos de tédio de sua vida até chegar a momentos de interrupção de seu cotidiano; porém, ele envelhece até a idade que teria quando esse momento de interrupção/mudança aconteceria. Assim, para não viver o momento de tédio de troca de fraldas de sua filha, ele acelera sua vida até a data do casamento dela; ele vê que ela está linda e feliz e ele 20 anos mais velho. Então se pergunta por onde esteve enquanto ela cresceu. A resposta: vivendo no modo automático. Esteve com ela durante o crescimento dela, mas sequer se recorda. Apavorante, não?
A moral da história é: não busque por cortes temporais. Viva a sua vida em sua plenitude: há beleza mesmo em momentos cotidianos.
E cá estou, existencialista, em uma argumentação triste e reflexiva, recorrendo ao Adam Sandler para dar uma guinada otimista para o fato de que o cotidiano entedia e a vida não tem corte temporal.
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