Como deixar de falar de Black Mirror? Poucos episódios, um eixo temático e muito a pensar. Trata-se de uma série tecnofóbica, que, não só problematiza e tenciona a naturalidade passiva com que vivemos a tecnologia nos tempos atuais, mas também joga livremente com nossa empatia. Cada uma das histórias parece brincar com nossos afetos. Vez ou outra somos convidados a experimentar a arrogância de vivenciar o episódio como um eventual mar de clichês e, logo em seguida, o curso das coisas muda e nos mostra o quanto genial é a série. Longe de ter clichês ou mais do mesmo, o que tanto nos ameaça em termos de série.

São episódios únicos, de vida própria, mas que puxam uma mesma linha temática nos levando a fazer o que o ecossistema midiático, onde passamos grande parte de nossas vidas, mais nos tem feito evitar, pensar. É impossível terminarmos os episódios da série e não ficarmos minutos, horas e até dias pensando a respeito. Sua ficção é do presente. Longe de ser aquela ficção do impossível, do improvável, do próximo século. É uma ficção do presente, apenas um ou outro detalhe tecnológico ainda não é viável. Entretanto, do ponto de vista de nossa frágil humanidade, de nossos afetos, tudo ali é possível. Somos potenciais míopes midiáticos como no episódio do Hino Nacional, possuidores de atitudes passivas diante da mídia como na história da bicicleta, incapazes de enxergar o que vemos como no terceiro episódio da primeira temporada, melancólicos como no episódio “be right back”, banalizadores do mal como em Urso Branco, brincalhões com a política em momentos Waldo e, finalmente, torturadores de nossas próprias consciências como em White Christmas.

Uma série como esta, que propõe uma temporária destituição do papel evolucionista dado pela modernidade à tecnologia, faz-se necessária enquanto instrumento didático e pedagógico. Suas possibilidades estão além do entreter. Ela nos mostra, didaticamente, onde mídia e tecnologia podem nos levar. Black Mirror nos faz pensar como viveremos, daqui a pouco, quando a tecnomídia habitar nossos corpos, ser parte integrante de nossos órgãos, mudando o curso do que até hoje chamamos de natural. Logicamente que não estou falando apenas da tecnologia como extensão do corpo, como um dia problematizou McLuhan. Não se trata apenas de estender e sim de, obrigatoriamente, ser parte integrante e integral. A série mostra uma verdadeira simbiose entre carne humana e tecnologia, remodelando nossas formas de ser, estar e, principalmente, simbolizar. Nossa principal capacidade enquanto humanos, a arte de interpretar finalmente estaria determinada a ser mediada por aparelhos que estariam sobrepostos à realidade, mudando-a sem qualquer possibilidade de retorno.

Black Mirror é obrigatório a todos. Alguns episódios precisam de preparo prévio para serem assistidos. Vê-los não será um ato em vão. Por exemplo, Urso Branco é um episódio forte. Assista acompanhado, se for preciso. Caso você realmente se conheça a ponto de saber que em situações de extremo desconforto precisa de alguém do lado, não hesite em pedir para alguém assistir com você, mas não perca estes episódios. A modernidade finalmente chegou. E aí? O que fazemos com ela? O que virá depois?

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João Matta

Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP com doutorado sanduíche na University College of London (UCL). Atualmente é professor do curso de Publicidade e Propaganda da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

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