O sábado promete! Com mesas incendiárias e polêmicas, como “Liberdade, Liberdade” em que Charles Ferguson e Glenn Greenwald debatem o estado crítico de nossa liberdade e privacidade nos dias de hoje; um encontro de grandes relatores dos males da ditadura militar; e “Tristes Trópicos, em que Beto Ribeiro e Eduardo Viveiro de Castro apresentam a condição terrível em que as culturas indígenas estão no Brasil.

A cada dia que passa, a ladeira que liga a Praia do Jabaquara ao Centro Histórico parece mais comprida. Talvez sejam as andanças, as noites mal dormidas e a recém-adquirida habilidade de não tropeçar nas ruas irregulares cobrando seu preço. Mas a curiosidade é grande e serve de muleta, de apoio e até de bicicleta.

Me aconchego em uma das televisões ao lado do Café da Tenda dos Autores. Secretamente chamo esse lugar de “camarote”: cadeiras confortáveis, uma tv enorme, som de qualidade e a possibilidade de se pegar um café sem perder o lugar.

A mesa com Charles Ferguson, diretor do documentário “The Inside Job”, sobre a crise financeira que abalou os EUA e todo o resto do mundo em 2009, e Glenn Greenwald, jornalista responsável pela divulgação e cobertura dos documentos secretos da CIA pelo hoje exilado Edward Snowden, começa com uma baixa: a jornalista Lúcia Guimarães chegou a Parati e adoeceu, sem condições de mediar a mesa. A tarefa fica por conta de Paulo Wernek, curador da FLIP.

Greenwald já começa incendiário, quando expõe a crise pela qual a inteligência americana está passando, quando a CIA negou espiar membros do senado envolvidos em leis para maior fiscalização das ações da entidade e investigações provaram que estava mentindo. Isso desencadeou uma bola de neve que culminou com o descaso de Obama ao admitir que os EUA usaram e usam de tortura em suas guerras.

Ferguson, por sua vez, também critica o governo americano, que este acusa de ter conhecimento dos procedimentos ilegais que levaram à bolha do mercado imobiliário americano. Critica principalmente outra fala do presidente Obama em que este relativiza as ações praticadas e diz não serem crimes. O convidado acha curioso que um homem formado em direito diga que as mentiras contadas pelos Bancos não sejam crimes.

Questionado acerca do papel do ativismo no jornalismo, Greenwald diz achar que um veículo que apenas mostra dois ou mais lados de um conflito, sem que seus jornalistas se posicionem criticamente a respeito, pode ser considerado ativivismo em prol do status quo, isto é, do governo dominante. O jornalismo, para ele, deve ser honesto, isto é: jornalistas devem expressar sua opinião, seja ela contrária ou a favor do governo.

Durante o almoço, uma longuíssima caminhada ao redor de Parati em busca do restaurante perfeito. Após mais de uma hora e metade da mesa seguinte perdida, a vontade está clara: não será um PF ou um filé de peixe que vai matar a fome. Será Açaí. E quanto mais, melhor.

É nesse momento que mais um desses momentos mágicos da FLIP acontece. Não sei o que acontece com as mesas de Parati, mas elas têm uma capacidade mística de atrair pessoas interessantes quando se deixa lugares vagos nelas.

Um homem apressado, lanche e cervejas em mãos e havaianas no pé, pede licença para se sentar à mesa. Não há mais lugares vagos no local. Eventualmente começamos uma conversa sobre a infraestrutura de Parati. O homem, João, já veio em várias edições do evento. Mas diz que as que mais o marcaram foram justamente aquelas que não pôde participar. Pergunta se assisti à mesa sobre a Ditadura Militar. “Acabei de sair de lá” ele diz. “Poxa, esqueci completamente. Foi boa?” tenho a ingenuidade de perguntar. “Como assim você não assistiu?” e discorreu sobre como foi emocionando o relato de Marcelo Rubens Paiva, quão curioso o fato de Persio Arida ter sido torturado e hoje se considerar de direita e até mesmo a admirável força da família de Bernardo Kucinski.

Diz que minha geração, que não lutou e não viu o horror da ditadura, precisa ser lembrada de que muitos lutaram, e muitos morreram, para se criar ferramentas que evitassem uma nova repressão e censura de tal magnitude. Reflete que, após o fim da Ditadura, o Brasil e o brasileiro estavam preocupados demais em juntar os cacos da economia e da política para se preocupar em entender e digerir aquele período passado. Hoje, quase 30 anos após o fim da ditadura, começa-se a olhar para trás, começa-se a querer cutucar aquela ferida aberta, tão dolorida. É curioso que quanto mais se cutuca, mais ela dói e mais parece se expandir. Mais coisas aparecem. Foi uma dessas expansões que emocionou Rubens Paiva filho.  Seu pai foi torturado e morto pelos militares por se opor a eles. Este ano, 44 anos depois de sua morte, que algumas informações acerca da data exata do ocorrido vieram à tona.

Nossa geração pode ainda não ser capaz de apreender todo o impacto da Ditadura Militar no Brasil, mas seus sinais estão por toda a parte: nossos grandes músicos eram, em sua maioria, opositores do regime; nossos escritores produziram grandes obras no exílio, nossos jornalistas sobreviveram à censura. Nem precisa ir longe: o grande homenageado da FLIP 2014, Millôr Fernandes, era um ferrenho crítico do regime e talvez só tenha sobrevivido por, justamente, atrair atenção demais.

O horário da próxima mesa se aproximava, a hora voa quando se está em um bom papo. João vira para nós e diz “Tenho ingressos para a próxima mesa, mas não vou usá-los. Vocês querem?”. Aceitamos. É a magia de Parati.

Minha barba. Minha vida.