O fortuito encontro do almoço nos deu um novo plano para a tarde: a mesa “A Verdadeira História do Paraíso”, com os escritores Etgar Keret, de Israel, e Juan Villoro, do México.

Consagrados autores tanto em seus países de origem quanto em todo o resto do mundo,  esbanjaram piadas e bom humor no que foi uma das mais divertidas mesas da Festa. Etgar, que escreve como forma de fugir dos momentos ruins e desconfortáveis da vida, diz que escreveu parte de seu novo livro, especificamente um conto que se passa durante a queda de um avião, espremido durante um vôo entre um casal um tanto estranho, ela só queria sentar na janela, o marido no corredor. Sobrou para Keret ser esmagado pelos “gigantes” como descreveu, na poltrona do meio.

Já Villoro tem a teoria de o humor pode e deve ser usado quando em momentos de grande tristeza e violência, como é o caso de muitas cidades mexicanas na luta contra o narcotráfico. Acha que com humor, assuntos difíceis de se lidar e falar acabam sendo tratados e que isso é bom. O autor é bastante crítico quanto à ação dos EUA em relação ao vizinho México, principalmente se levar sem conta o trânsito de cocaína na fronteira, afinal “Enquanto eles colocam  no nariz, nos colocamos nos cadáveres”. Bem, para quem teve um pai cujas contas da casa, todas as notas de gastos e trocos recebidos ficavam guardados dentro de um imenso volume do Capital de Marx, até que é algo esperado.

Com relação ao tema que dá nome à mesa, Paraíso, Keret fala sobre seu país e o conflito com a Palestina. “A Paz exige comprometimento. É apenas um pedaço de terra que precisa ser dividido da maneira correta, mas ninguém está disposto a fazer concessões”. Quando perguntado sobre a recente resposta do premiê israelense aos esforços diplomáticos brasileiros para com o conflito em Gaza, disse que “tempos violentos geram medo. E quanto mais medo, maior a agressividade”, logo taxando a resposta de “bem idiota”.

Após as boas risadas, me encontro com uma professora e sua primeira pergunta: “Nossa, você viu a mesa da ditadura, certo? Foi demais”. Começo a sentir que estive de fora de algo importante.

A mesa seguinte, após um rápido café, foi uma das mais comentadas após sua realização, com Eduardo Viveiro de Castro e Beto Ribeiro. O motivo: além de ser a segunda mesa abordando o tema do indígena brasileiro, a mesa foi explosiva. Ambos os convidados rasgaram o verbo com relação às políticas pouco ou nada condizentes com um governo que alardeia sua preocupação com aspectos sociais do Brasil. É também relevante sua crítica de que um senado cuja maioria dos integrantes é proprietário de terras, procure aprovar leis que beneficiem proprietários de terra, situação que não é aquela da grande maioria da população mas cujo impacto por  ela é sentido.

Afirmações apocalípticas (“Estamos chegando a um ponto de colapso, pode ser o fim do mundo. E que entende melhor do fim do mundo do que os índios, que tiveram o seu destruído 500 anos atrás?”) à parte, a mesa foi um bom chacoalhão e uma interessante abordagem à essa questão tão difícil que é a dos habitantes originais do nosso país.

Uma das mesas seguintes, que confesso era uma das que eu mais esperava, trazia a escritora Jhumpa Lahiri, inglesa de origem bengalesa que escreve sobre as diferenças culturais entre o país que vive e o país de sua família. Ao ouvir sobre essa mesa, a descrição dizia que seria uma conversa sobre a literatura como uma forma de mediação entre culturas. Como um grande fã de Versos Satânicos, de Rushdie, que sou, fiquei empolgado. Mas o conteúdo de seus livros e suas ideias ficaram um pouco em segundo plano. A mesa foi conduzida de forma a dar ênfase para a trajetória pessoa da escritora, sobre aspectos de alguns de seus livros e seu processo de aprender uma nova língua e morar em um novo país. A mediação entre culturas presente na literatura acabou abordada quase que de forma indireta. Uma pena.

Passeando por Parati, esperando a última mesa do dia (e de minha jornada pela FLIP), com David Carr e Graciela Mochkovsky sobre jornalismo e política, fui tirado de meu caminho. Raptado, sequestrado. Sem me dar conta a música me envolveu, as  pessoas começaram a passar por mim, correndo para acompanhar a origem dos sons. Não entendi direito e resolvi acompanhar também. Um circo passava pelo meio das ruas de Parati, entrando e saindo de lojas e restaurantes, infectando passantes com sua alegria e música.

Elegantemente correndo pelas ruas do centro histórico, verdadeiro desafio até para quem não estava fantasiado e carregando instrumentos musicais, o Teatro Lume, de Campinas, foi se dirigindo à Praça da Matriz. Todos seguiam. Todos eram parte do espetáculo. E o espetáculo envolvia a todos nós. Por vezes o envolvimento era mesmo físico, quando quase que sem perceber se via rodeado de personagens coloridos e barulhentos. Quase uma hora de catarse e assombro (no melhor sentido!) depois, a festa acabou. Agradecimentos e as cores e o barulho voltam para o meio das ruas pedregosas. A praça parece perder sua vida, pessoas se dispersam, o som vai sumindo. Fico só em meio às grandes letras de Millôr que enfeitam a praça.

Percebo que durante 4 dias estive envolto em letras, mas só agora, com essas enormes e coloridas ao meu redor, me dou conta disso. Percebo que a riqueza desses rabiscos é tremenda, que as histórias e verdades que delas emergem nos encantam e nos fascinam. Nos salvam e nos ameaçam. Lemos tanto em nossa vida, tem sido a base da comunicação de nossa geração, e mesmo assim esquecemos que estamos lidando com a palavra. Tão poderosa, tão humana.

Foi a palavra que deu corpo para grandes escritores, como Eliane Brum confessa ter acontecido consigo. É a palavra que, quando nos atinge, muda a forma como  enxergamos o mundo, como disse Vladímir Sorókin. É a palavra a grande rainha da Festa Literária de Parati. Rainha que a todos encanta e a quem toca, transforma.

Impossível sair de Parati sem voltar diferente. Seja pela saudade que já cresce a cada dia, seja pela quantidade de coisas maravilhosas que pareceram brotar frente aos meus olhos em algumas páginas que eu antes jamais havia notado. Fui atingido pela palavra.

Só para terminar esse relato com uma das frases mais interessantes e inesperadas que ouvi, voltando de van quase sozinho para o centro histórico horas antes de embarcar de volta para SP: “Uma pena não ter Ubaldo esse ano. Esse cara entendia de boteco. Ele, Veríssimo… Ótima companhia”.

Minha barba. Minha vida.