Literatura

Diário de Bordo – FLIP 01/08 Parte 2

By Leo Amaral

August 04, 2014

Depois de um almoço pautado pela visão pouco convencional de meu amigo artesão e pelo espetáculo pouco esperançoso da televisão, é hora de assistir uma mesa com quem trabalha de perto com o espetáculo: roteiristas globais.

José Alvarenga Jr, Roberto D’Ávila, Newton Cannito e José Carvalho atraíram muita gente para uma sala muito pequena. Mas não é problema, a conversa foi transmitida no quintal da grande casa colonial que virou a Casa do Autor Roteirista e também na improvável (mas que se mostrou um cinema perfeito) capela vizinha.

A dificuldade de se escrever em um país cujas produções são demasiado longas e são redirecionadas a todo momento seguindo pesquisas de interesse e satisfação do público foi um ponto bem interessante. Foi ótimo saber que, como nós espectadores admiramos as minisséries, também o adoram os roteiristas, que recebem liberdade quase total. Talvez seja por isso que gostamos tanto delas, talvez seja por isso que elas sejam feitas. Mas funcionam.

A grande dificuldade dos seriados no Brasil parece ser aproximar conteúdo e público; é clara a ótica de classe média com que toda história é contada na televisão. É o ponto de vista dessa classe sobre todas as outras e sobre si mesma. E o público não é, necessariamente, de classe média. O problema da aproximação passa também pela questão dos gêneros televisivos. Por algum motivo nossa produção cinematográfica e televisiva tenta ao máximo se afastar dos gêneros, sempre descambando para algum tipo de domédia dramática. Claro que alguns gêneros perdem totalmente o sentido para o público brasileiro, como é o caso do policial. Como fazer um seriado sobre investigação criminal em um país que tem 90% de seus crimes não solucionados?

Chega a grande surpresa do dia, quiça de toda festa: a mente brilhante e o trabalho minucioso e esclarecedor de Andrew Solomon. Solomon é uma figura inconfundível, com sua extravagância e olhos azuis e pele clara. Parece ter “gringo” tatuado na testa. Não era raro cruzar com a figura pelas ruas de Parati, sempre a passos apressados como que ávido pela próxima experiência a ser vivida.

Solomon fala de temas polêmicos e difíceis de serem trabalhados, como a depressão e a aceitação de crianças não convencionais. É interessante frisar que , apesar de pensarmos apenas em termos de gênero, seu livro aborda desde crianças com particularidades mentais e físicas, até prodígios, que não são menos peculiares de se lidar. Solomon escreve sobre depressão apoiado em sua experiência pessoal: após a morte da mãe viu-se incapaz até mesmo de alcançar o telefone para pedir socorro. Como define de maneira muito lúcida: o contrário de depressão não é felicidade, mas vitalidade, a capacidade de se levantar da cama e fazer o que se tem vontade. Solomon agradece seu pai, que o ajudou com sua crise, dedicando seu livro a ele, o homem que “lhe deu a vida duas vezes”.

O autor fala de suas experiências em países africanos, de como nosso tratamento para depressão, a terapia, era visto por alguns povos como aquela coisa estranha em que “um desconhecido te leva para uma sala escura, sozinho, e pede para você falar dos seus problemas durante uma hora”. Mais diferente do que isso os tratamentos deles não poderiam ser: toda a comunidade se movimenta em um ritual cujo epicentro é justamente a pessoa deprimida. Toda a comunidade se une e reforça seus laços e sua identidade em um evento que deixaria o sociólogo Durkheim orgulhoso de suas teorias. Dessa maneira, o doente é lembrado de que a ele é permitido amar seus semelhantes e que estes também o amam. É essa constatação que, para Solomon, define o processo de recuperação da depressão, da ansiedade e de muitos traumas.

O autor fala também de suas entrevistas para o livro “Longe da Árvore” em que procura entender como famílias convencionais lidam com crianças excepcionais. Os relatos são variados, como uma mãe que contrariou todas as indicações médicas a seu filho e resolveu batalhar pela vida do garoto, nascido com rara doença que afeta a coluna vertebral. Coitada, 18 anos e mais de 30 cirurgias depois ela ainda não consegue parar de se preocupar com seu filho: será que ele não vai beber em excesso no bar com seus amigos de faculdade? Mas o amor de mãe é assim mesmo.

Amor de mãe conturbado é aquele que Solomon encontrou nas mulheres de Ruanda, cujos filhos vieram da onda de estupros durante o maior genocídio do século XX. Perguntado por alguém da plateia se acreditava em “Mal com M maiúsculo”, o autor descreve os horrendos casos de duas mulheres do país. Ambas aprenderam a lidar com o fruto da maior violência que um ser humano pode sofrer e mais, aprenderam a amá-lo e a se importar com eles. Para o autor, o Mal existe, sim. Mas o amor também existe e é mais forte.

O ponto mais sensível da mesa foi a pergunta e constatação de um membro da plateia de que familiares e amigos de vitimas da tragédia de Santa Maria estavam presentes e se essa dor algum dia passaria. Solomon é direto ao ponto: “Essa dor não passará. Ela sempre vai acompanhar a vida de vocês. Cabe a cada um aprender a dar menos atenção à ela e valorizar todos os outros aspectos da vida, que juntos dão a impressão de amenizar o fardo”.

Uma mesa difícil, todos aqueles de nós que já perdemos alguém querido somos quase que obrigados a retomar nossa dor para então analisá-la e entender como aprendemos a lidar com ela. A constatação é essa mesma: ela não passa nem diminui, só nos acostumamos a pensar menos nela.